Foi no longínquo ano de 1989 (já lá vão 23
anos) que a Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das
Pessoas com Deficiência determinou que a legislação aplicável deveria ser
revista e incluir obrigatoriamente medidas de eliminação das barreiras
arquitetónicas (convenientemente, não se impôs qualquer prazo para o efeito). Mas
foi preciso esperar oito longos anos para ser publicada a Lei das
Acessibilidades (Maio de 1997), que, nomeadamente, veio impor regras de
acessibilidade para o espaço público (passadeiras, passeios, etc.). Essa lei
entrou em vigor em 22 de Agosto de 1997 (já lá vão mais de 15 anos) e
estabeleceu um prazo máximo de sete longos anos para que os espaços já
existentes à data da entrada em vigor da lei fossem adaptados às novas
exigências legais (todas as obras iniciadas depois de 1997 teriam, obviamente,
de satisfazer as novas regras técnicas). Esse prazo terminou em 22 de Agosto de
2004 (há mais de oito anos) e o incumprimento por parte das autarquias foi
generalizado. Mesmo grande parte das obras feitas depois da entrada em vigor
das novas regras não respeitou os requisitos legais de acessibilidade impostos.
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O prémio para os infratores
surgiu em Agosto de 2006, com a publicação de uma nova Lei das Acessibilidades,
que entrou em vigor em 8 de Fevereiro de 2007 e trouxe consigo uma espécie de “amnistia”:
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- Às autarquias responsáveis
pelas obras feitas depois de 1997 com violação dos novos requisitos legais
(obras ilegais, portanto) não seriam aplicadas quaisquer sanções, e, pior, foi
concedido um obsceno prazo até 8 de Fevereiro de 2012 para que essas obras
fossem corrigidas, no sentido de passarem a obedecer ao disposto na lei.
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- Às autarquias que não tinham
cumprido a obrigação legal de até 22 de Agosto de 2004 adaptarem a
acessibilidade nos espaços públicos às novas regras [no que diz respeito às obras anteriores a 1997]
também não seriam aplicadas quaisquer sanções, e foi-lhes concedido um - ainda
mais obsceno - prazo até 8 de Fevereiro de 2017 para fazerem essa adaptação.
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Obviamente, todas as obras
novas continuariam a ter de respeitar os requisitos legais de acessibilidade,
sem qualquer moratória.
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Decorridos mais de seis anos
desde a publicação da nova [cada vez menos nova] Lei das Acessibilidades e mais
de quinze anos desde a publicação da lei anterior, o blogue A Nossa Terrinha
[desta vez com ajuda externa] saiu à rua para avaliar as condições de
acessibilidade em cadeira de rodas nas ruas de Oeiras (arredores de Lisboa). Na
impossibilidade de fazermos uma avaliação total (dada a dimensão do trabalho
envolvido), selecionámos, num mapa, uma área razoavelmente grande do centro de
Oeiras e Santo Amaro, delimitada:
- a Poente, pela Rua José Diogo
da Silva;
- a Sul, pelas avenidas Duarte
Pacheco e do Brasil;- a Norte, pelas ruas Marquês de Pombal e Cândido dos Reis;
- a Nascente, pela Avenida Carlos da Silva e pela Rua José Falcão.
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O facto
de se tratar de uma área contínua permite obviar aos inconvenientes de uma
análise isolada de apenas uma rua: o mais normal é as pessoas fazerem percursos
que incluem vários arruamentos ou partes de arruamentos.
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Percorremos as três dezenas de
arruamentos situados no interior da área assim delimitada. Rua a rua,
quarteirão a quarteirão, verificámos, basicamente, a possibilidade de
circulação (nomeadamente, a largura de passeio livre de obstáculos) e as
condições de atravessamento (nomeadamente, as características das passadeiras, onde
estas existem).
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Os critérios de avaliação
seguidos no que diz respeito às passagens de peões foram aqueles que se
encontram estabelecidos na lei das acessibilidades: o desnível entre estas e o
limite do passeio adjacente não pode ser superior a dois centímetros, e o
passeio deve ser rampeado no enfiamento da passadeira (não devendo a rampa ter
uma inclinação superior a 8%; a nossa análise não incluiu a medição da
inclinação das rampas, pelo que falhou nesse ponto). Para medir a altura dos
lancis junto às passadeiras, fizemos o nosso próprio medidor, pintado a
vermelho a partir do limite máximo referido, para uma mediação mais rápida e
segura. Só avaliámos de forma positiva as passagens de peões acessíveis
por ambos os passeios. Por outro lado, deparámos com alguns casos em que em
algum ponto do passeio a altura do lancil não ultrapassa os dois centímetros,
mas excede esse limite no resto do passeio, no enfiamento da passadeira, o que
é suficiente para as duas rodas da cadeira não subirem o passeio.
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No que diz respeito aos
passeios, a largura mínima recomendável de passeio livre de obstáculos é de um
metro e meio, que corresponde à largura mínima necessária para que uma cadeira
de rodas se possa deslocar (cruzando-se com um peão) e fazer uma rotação de
360º sem deslocamento. Optámos, no entanto, pelo critério menos exigente da
largura mínima admissível de passeio livre de obstáculos, que é de um metro e
vinte centímetros (que apenas permite uma rotação sem deslocamento de 180º).
Obviamente que, mesmo que este canal de circulação contínuo e livre de
obstáculos de largura não inferior a 1,2 metros seja respeitado, ele não permite
o cruzamento de duas cadeiras de rodas - não sendo difícil imaginar as
dificuldades quando, no mesmo passeio, há duas cadeiras de rodas a circular em
sentidos opostos. Mesmo adotando o critério menos exigente, decidimos, ainda assim,
aligeirá-lo: em passeios com uma largura de pelo menos 1,2 metros, mas com
estrangulamentos originados por obstáculos (como postes ou árvores), avaliámos
como acessível o passeio em que esses obstáculos não impedem a passagem de uma
cadeira de rodas (a menos que as barreiras sejam de tal forma numerosas que não
constituam uma exceção, mas a regra).
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Temos de ressalvar a
insuficiência desta avaliação, por não termos qualquer experiência de
deslocação em cadeira de rodas: uma avaliação absolutamente fidedigna
pressupunha tentar percorrer estes arruamentos de cadeira de rodas ou na
companhia de uma pessoa com mobilidade reduzida. Não fizemos nem uma coisa, nem
a outra. Julgamos, ainda assim, que o quadro mostrado neste artigo é de tal
modo impressivo que transmitirá uma ideia muito aproximada da realidade.
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Embora esta avaliação tenha
sido feita na perspetiva da mobilidade em cadeira de rodas, muitas das centenas
de imagens colhidas e que serão aqui publicadas permitirão facilmente adivinhar
as dificuldades de circulação de outros tipos de peões vulneráveis ou com
mobilidade condicionada, como por exemplo invisuais, pais transportando
carrinhos de bebé, idosos e crianças, e, nos piores casos, mesmo de todo o tipo
de peões. A propósito de cada rua, serão, no final, feitas breves referências à
mobilidade pedonal em geral.
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Compreendemos que para muitas
pessoas seja difícil colocarem-se na posição de alguém que se desloca numa
cadeira de rodas – para isso contribuirá o facto de se verem poucas pessoas com
mobilidade reduzida (em cadeiras de rodas) nas ruas: a exclusão social a que (coletivamente) as
condenamos ajudará a manter a nossa mente confortavelmente longe dos seus
problemas. O objetivo deste artigo é o de constituir mais um alerta contra este
estado de coisas, despertando consciências adormecidas.
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Na última parte do artigo
exporemos as nossas conclusões.
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À Marta e ao Jorge, que
colaboraram a título principal neste extenso trabalho, o nosso grande agradecimento.
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RUA JOSÉ DIOGO DA SILVA
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Esta rua tem início no centro de
Oeiras e só termina junto à praia de Santo Amaro, constituindo o principal
acesso pedonal entre o centro de Oeiras e a praia. Tendo em conta a área que
delimitámos previamente no mapa, vamos apenas considerar aqui o troço até ao
cruzamento com a Avenida do Brasil (que é um troço de sentido único).
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Bastam poucos metros para
verificar que ambos os passeios desta rua
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[Uma rua com uma larga faixa de
rodagem onde os automóveis (incluindo veículos pesados) circulam a velocidades
demasiado elevadas, apesar da notória falta de condições de circulação pedonal
nos passeios]
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são intransitáveis por pessoas que
se deslocam em cadeira de rodas.
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Além do mau estado da calçada
em muitos locais…
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[A que acrescem buracos e “armadilhas”
que são um convite à queda de peões:]
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…são inúmeros e de variados
tipos os obstáculos à circulação nos passeios: lixo…
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…carros em cima do passeio…
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…postes e sinais de trânsito
que, em vários locais, bloqueiam a passagem a qualquer peão…
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…resíduos verdes atirados para
cima do passeio (uma verdadeira praga em Oeiras, ao longo de todo o ano)…
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…interrupções de passeio, com
desníveis intransponíveis por uma cadeira de rodas…
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Passeio
Nascente: na passagem de um troço de passeio ao outro da Rua José Diogo da
Silva, atravessando a Avenida do Brasil, não há passadeira e os lancis de passeio
têm uma altura disparatadamente elevada.
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…e árvores, muitas árvores, em ambos os lados da rua, que afastam dos passeios todo o tipo de peões:
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Existem lugares de
estacionamento automóvel ao longo da rua, significando isto que há espaço para
alargar os passeios – mas em Oeiras o automóvel tem prioridade sobre o elementar
direito de mobilidade dos deficientes e dos restantes peões.
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Neste longo troço da rua, só
existe uma passadeira, já junto ao cruzamento com a Av. do Brasil. A passagem
de peões…
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…é, no entanto, intransponível
para cadeiras de rodas: o lancil que se vê na imagem anterior tem uma altura
superior a 10 cm.
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Conclusão: rua não acessível.
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Mobilidade pedonal em geral: nesta
rua em que só os automóveis – com bastante espaço para circulação e para
estacionamento – parecem ser importantes, só a espaços os peões têm condições
minimamente decentes para circular nos passeios, sendo obrigados a gincanas entre passeio e
faixa de rodagem (para a qual muitos não têm paciência, preferindo circular
sempre pela faixa de rodagem). No caso do passeio Nascente, junto ao qual existem lugares de
estacionamento, essa “gincana” põe particularmente em perigo a
segurança dos peões, porque estes surgem na faixa de rodagem entre os automóveis
estacionados, com os consequentes problemas de visibilidade e risco acrescido
de atropelamento, numa rua onde os veículos - mesmo os pesados - não circulam
propriamente devagar. O passeio é impróprio para carrinhos de bebé (os pais têm de transportar os seus bebés no espaço onde circula o trânsito automóvel) e é perigoso
para invisuais e para idosos. Do ponto de vista da mobilidade pedonal, esta rua é uma
aberração.
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(continua)
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6 comentários:
Excelente descrição de um enorme problema de Oeiras, onde os carros valem mais do que as pessoas.
Sugeria a participação de todos na conferência "Melhor Mobilidade para Oeiras" a decorrer no Sáb. 24 de Novembro das 14 ás 19h, no Palácio dos Anjos.
Mais informação em http://cdsppoeiras.blogspot.pt/.
Obrigado por mais este trabalho impecavelmente documentado.
Isto é o espelho de Portugal. Não é só Oeiras. Viva o popó.
A vossa ênfase nas árvores ainda vai resultar em que elas sejam as únicas vítimas se houver mudança. Os automóveis não serão nunca afetados, disso tenham a certeza.
Na maior parte das fotos näo vejo passeios.
Vejo protectores de paredes, protectores de muros, protectores de postes, protectores de árvores.
Passeios? Onde?
O estado raramente cumpre as suas próprias regras, aliás, é de tal maneira que chegam a criar regras diferentes para os seus funcionários, porque o descumprimento é tal, que em vez de despedirem/ prenderem as pessoas, mudam as leis e pronto.
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