A hecatombe da ferrovia portuguesa: a explicação da crise

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A CP voltou a perder passageiros em 2011. A crise económica é, agora, uma explicação conveniente invocada pela transportadora ferroviária nacional, mas é uma explicação que ignora que, estruturalmente, o comboio vem perdendo importância no nosso país – em contraciclo com a Europa – desde o final dos anos 80. Os números são avassaladores: a CP transporta hoje pouco mais de metade dos passageiros que transportava em 1988. A vertiginosa queda não se circunscreveu ao período posterior à eclosão da crise em 2008 (só uma pequena parte dos 46% de passageiros perdidos é que respeita a este último período) e vertiginosa foi também a queda no período de prosperidade e de crescimento económico do país.
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Ano após ano, a CP analisa a perda de utentes do comboio e associa-a sempre, exclusivamente, a causas externas. Da parte da empresa transportadora, nunca existe a humildade de uma autocrítica nessa análise. Nunca se coloca a hipótese de incluir, entre as causas do descalabro da ferrovia, fatores como erros de gestão da própria transportadora, má qualidade do serviço prestado, transbordos vários, estações ao abandono e degradadas, horários desajustados e desencontrados,
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[Lembra-se do estudo suíço que recomendava a introdução de um novo sistema horário na rede ferroviária portuguesa e que custou 380 mil euros ao erário público? Continua numa gaveta. Desde 2009.]
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…etc. Não. As causas são sempre exteriores. De forma que, anualmente, chegamos sempre à conclusão de que a CP presta um serviço perfeito e de que a enorme quebra do número de passageiros verificada nos últimos 23 anos se deve exclusivamente a fatores externos e conjunturais - como a crise económica ou as greves.
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Mas poderiam os números de 2011 ter sido diferentes? Isto é, será expectável que, em período de crise económica, o número de passageiros do comboio cresça?
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É natural que a crise económica e o crescimento do desemprego conduzam, por um lado, a uma retração da procura deste meio de transporte. Os passageiros diários do comboio (em movimentos pendulares casa-trabalho-casa) que perdem o emprego deixarão, na normalidade dos casos, de viajar diariamente neste meio de transporte. E tenderá a haver uma diminuição da procura nas viagens de longo curso por motivos de lazer.
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Por outro lado, no entanto, a crise económica constitui, para a CP, uma oportunidade de ouro de captar muitos novos utentes, nomeadamente entre os que optam pelo (mais caro) automóvel particular nas suas deslocações. E em Portugal ainda é grande, como bem sabemos, a margem para essa transferência modal.
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A evolução positiva do número de passageiros registada nos comboios suburbanos do Porto desde a eclosão da crise económica em 2008 (o número de passageiros de 2011 foi 13,8% mais elevado do que o de 2007) é um bom exemplo de como, mesmo em tempos de grave crise económica e de desemprego galopante, o número de passageiros do comboio pode crescer.
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O que se espera de uma empresa transportadora ferroviária verdadeiramente empenhada em captar utilizadores de outros modos de transporte – sobretudo, o carro – é que, precisamente, tenha uma estratégia de aproveitamento da crise para atrair novos utentes.
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Já aqui referimos, noutra ocasião, que a CP não fez um único estudo de mercado para avaliar o potencial crescimento da procura do comboio em consequência da introdução das portagens nas anteriores autoestradas SCUT (Sem Custos para o Utilizador).
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Como se sabe, a autoestrada A23 desenvolve-se no mesmo corredor da linha férrea da Beira Baixa. A A23 foi, justamente, uma das autoestradas anteriormente gratuitas para o utilizador que passaram a ter portagens.
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A introdução das portagens na A23 coincidiu temporalmente com a conclusão das obras de modernização e de eletrificação da Linha da Beira Baixa entre o Entroncamento e a Covilhã, onde se gastaram muitos milhões de euros, e que passaram a possibilitar à CP a prestação de um serviço de maior qualidade, capaz de atrair muitos dos utilizadores do automóvel.
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Contudo, a CP não só não fez um estudo nem delineou uma estratégia destinados a conquistar viajantes para a linha modernizada e eletrificada, como, meses depois de um aumento dos preços das viagens de comboio, degradou a qualidade do serviço de longo curso (Intercidades) prestado, com diminuição de conforto e de velocidade – tal como explicámos aqui há alguns meses.
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Resultado: numa linha modernizada e com todas as condições para ver crescer o número de passageiros (com a preciosa «ajuda» da introdução de portagens na concorrente autoestrada vizinha), isso não aconteceu, apresentando a CP, no documento de gestão esta semana publicado, a Linha da Beira Baixa como uma linha que continua a registar «baixos índices de procura» e «fraca procura».
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Em contrapartida, tal como foi recentemente noticiado no Jornal do Fundão, os utentes do autocarro de longo curso entre Covilhã e Lisboa têm vindo a aumentar. Só nos primeiros três meses deste ano, o número de passageiros do autocarro cresceu 10% relativamente ao mesmo período de 2011. "Apesar" da crise.
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A Rodoviária da Beira Interior delineou uma estratégia e, desde a introdução das portagens na autoestrada A23 e da alteração, para pior, do serviço Intercidades da CP, introduziu mais dois autocarros naquele percurso para captar novos utentes e introduziu melhorias na qualidade da frota, com a entrada ao serviço de cinco novos autocarros, equipados com internet sem fios e tomadas elétricas.
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A crise económica (que para a CP é causa de perda de passageiros do comboio) é, precisamente, apontada pelo administrador da Rodoviária da Beira Interior como explicação para o crescimento do número de passageiros que se tem verificado no autocarro de longo curso entre Covilhã (Fundão, Castelo Branco) e Lisboa, não deixando de referir a ajuda suplementar da introdução das portagens na A23 e... a diminuição da qualidade da oferta ferroviária. Esta transportadora rodoviária está agora a estudar novo reforço da oferta, com a introdução de mais autocarros diários no horário.
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