Comboios e intermodalidade

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É um problema que está diagnosticado há décadas e é um dos fatores que inibe a utilização do transporte ferroviário (por natureza, menos flexível do que o rodoviário): a deficiente interligação entre o comboio e os restantes transportes coletivos, designadamente o autocarro. Já nos anos 80, pela altura em que ocorreu a primeira grande sangria na rede ferroviária nacional, esse problema era há muito lamentado e mencionado como carecido de resolução, na medida em que afastava viajantes do comboio. Desde então, não há plano de transportes que não refira a necessidade de se promover uma eficiente intermodalidade entre o comboio e o autocarro. Até no sítio da CP se reconhece que «o transporte ferroviário é o mais eficiente em termos de emissões poluentes e consumo energético, no entanto a sua eficácia depende da articulação aos outros meios de transporte» e que «é necessário promover a complementaridade entre os vários modos de transporte existentes de modo a que cada cliente encontre a solução mais adequada à sua necessidade».
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Apesar de se tratar de uma questão consensual, a verdade é que, nestes anos todos, mais depressa se gizaram planos para diminuir a oferta ou para fechar linhas férreas - com fundamento na sua fraca procura - do que se deram passos no sentido de resolver este problema, que se reconhece ser um fator inibidor da procura do comboio.
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O problema coloca-se basicamente a dois níveis:
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a) A inexistência, na estação ferroviária de destino (ou de partida), de autocarro de ligação às localidades (ou ao centro das localidades) que essa estação serve - problema que se agrava nas estações localizadas fora das respetivas povoações ou nos seus arrabaldes;
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b) Nas deslocações regionais ou de longo curso, a deficiente intermodalidade entre o comboio e o autocarro.
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Da primeira questão já aqui falámos várias vezes. O problema subsiste e para muitas pessoas isso pode, de facto, inibir a utilização do comboio, na medida em que uma viagem de táxi (quando disponível) pode encarecer significativamente a viagem, tornando outros meios de transporte muito mais atractivos. Tomemos o exemplo da capital do Alentejo (Évora), uma cidade servida por uma linha férrea recentemente modernizada e eletrificada, com um serviço ferroviário de qualidade de ligação a Lisboa. Quase metade das carreiras de autocarros urbanos da cidade param junto do terminal rodoviário - mas já a estação ferroviária é servida por apenas uma carreira (que, desde logo, exclui vários bairros residenciais da cidade extra-muros). Se o leitor entrar no posto de turismo eborense e pedir informações sobre os horários do (único) autocarro urbano que serve a estação ferroviária, poderá constatar que só à chegada / partida de alguns dos comboios diários é que há autocarro de ligação [por semana, um em cada três comboios não tem autocarro de ligação], e que ao sábado a partir das onze e meia da manhã e ao domingo não há um único autocarro de ligação à estação (isto numa cidade com uma grande procura turística de fim-de-semana! Aliás, também não há autocarro a partir da estação relativamente ao comboio que chega a Évora à sexta-feira ao fim do dia - 20:25 h). Isto poderá parecer inacreditável numa cidade, mas, na verdade, só quem não esteja habituado a utilizar o comboio é que ainda se poderá admirar com esta chocante realidade. 
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A segunda questão prende-se com a utilização sucessiva de diferentes modos de transporte num mesmo percurso: o viajante, para se deslocar entre os pontos A e C, utiliza o comboio entre os pontos A e B e depois o autocarro entre os pontos B e C, ou vice-versa. Este problema coloca-se sobretudo quando não há linha férrea até ao destino pretendido.
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Um argumento insistentemente utilizado quando se encerram linhas férreas, ou troços de linhas férreas, é o de que o viajante fica mais bem servido se os correspondentes percursos forem realizados de autocarro, e apela-se à utilização combinada do comboio e do autocarro. Exemplo: encerra-se a linha férrea entre Évora, Estremoz e Vila Viçosa? O viajante pode descer no comboio em Évora e apanhar o autocarro para Estremoz. Ou para Borba. Ou para Elvas.
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Este transbordo enfrenta, porém, obstáculos (a própria necessidade de um transbordo pode ser, para muitos viajantes, um fator desmotivador do recurso a esta solução, que leva desde logo muita gente a afastar a utilização do comboio - mas nem é isso que estamos aqui a considerar, até porque uma boa coordenação de transportes pode minorar essa desvantagem).
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O primeiro obstáculo sério é de operacionalidade: a falta de coordenação em termos horários. Se o viajante sair do comboio no ponto B e tiver de esperar aí uma, duas ou três horas por um autocarro que o leve ao ponto C, só se não tiver outra alternativa é que optará por essa utilização combinada de transportes. A regra, porém, é a de não existir qualquer esforço de coordenação neste domínio, não faltando até os casos em que o autocarro parte minutos antes de o comboio chegar, obrigando o viajante a uma longa espera pelo autocarro seguinte. Muitas vezes, esta descoordenação de horários é do interesse da própria transportadora rodoviária, quando esta oferece um serviço concorrente com o comboio (ou seja, quando o autocarro daquela empresa também faz a ligação entre os pontos A e B; por vezes, aliás, o autocarro que o viajante vai apanhar, depois de uma longa espera, é proveniente do mesmo local onde ele apanhou o comboio...).
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O segundo obstáculo é infraestrutural: o facto de as estações ferroviária e rodoviária estarem, em muitos casos, localizadas em sítios distantes entre si. O conceito de interface de transportes é bastante antigo, mas continua a ser olimpicamente ignorado em muitas cidades deste país. Voltando ao exemplo de Évora, a estação rodoviária está a mais de dois quilómetros de distância da estação ferroviária…
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Évora
A azul: estação de caminho-de-ferro; a amarelo: estação rodoviária
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…e o caso de Évora está longe de ser único (ver, a título exemplificativo, outros casos no final deste artigo).
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Como se disse, relativamente a vários comboios que partem de / chegam a Évora, não há autocarros urbanos de ligação à estação e, portanto, nesses casos a alternativa que se coloca ao viajante é andar mais de dois quilómetros a pé - porventura carregando bagagens - até à estação rodoviária, para aí apanhar o autocarro regional ou expresso/longo curso para o seu destino. Ou então paga um táxi, o que encarecerá a viagem.
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Por vezes, com sorte, o autocarro regional, no seu percurso natural (isto é, sem fazer desvios), tem uma paragem em algum local mais próximo da estação ferroviária (por exemplo, o autocarro de Évora para a cidade de Reguengos passa a cerca de um quilómetro da estação ferroviária).
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Por vezes também, o autocarro regional ou o autocarro expresso faz escala na estação ferroviária, eliminando esse transtorno. Não é, porém, essa a regra (por exemplo, voltando ao caso de Évora, isso sucede apenas com 1 dos 8 autocarros diários de ligação de Évora à cidade de Estremoz; mesmo assim, e no sentido Estremoz-Évora, o autocarro chega à estação ferroviária pouco mais de cinco minutos antes de o comboio partir, o que é muito apertado para comprar bilhetes, e isto já para não falar da possibilidade de atrasos na viagem, nomeadamente em Évora - porque a chegada a Évora acontece em plena hora de ponta na cidade).
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Nos restantes casos, quando existe autocarro urbano de ligação entre as estações ferroviária e rodoviária, está-se, ainda assim, a introduzir mais um transbordo que pode ser desmotivador, por vezes com a agravante da incerteza de horários / de se chegar à outra estação a tempo de apanhar o transporte seguinte (se o intervalo entre transportes for curto).
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Estes obstáculos funcionam, quase sempre, a favor do autocarro (quando não do automóvel) e, portanto, em prejuízo do comboio. O que não é difícil perceber. Se o viajante tiver de escolher entre:
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- fazer a primeira parte do trajeto de comboio; chegar ao ponto intermédio e ter de se deslocar a pé entre a estação ferroviária e a estação rodoviária; eventualmente, esperar muito tempo pelo autocarro de ligação;
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- fazer o percurso todo de autocarro (mesmo quando a ligação não é direta, o transbordo é normalmente feito no mesmo local);
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escolherá, naturalmente, o autocarro e deixará, assim, de utilizar o comboio.
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Há quem argumente que, sobretudo no que diz respeito à coordenação de horários, este problema é de difícil resolução, quer por ser necessário conciliar diversos tipos de procura, quer por o transporte rodoviário ser normalmente explorado por empresas privadas e os respetivos contratos públicos de concessão, quando existem, não imporem este tipo de obrigações de serviço público: seria necessário sentar à mesma mesa governantes e transportadores ferroviário e rodoviário, no sentido de se conseguir uma melhor articulação do sistema de transportes.
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Por outro lado, esta é mais uma pescadinha-de-rabo-na-boca da ferrovia portuguesa (a juntar a tantas outras): as transportadoras rodoviárias até teriam, em princípio, interesse em fazer escala na estação ferroviária, se o número de utentes do comboio fosse suficientemente interessante (a menos que essas empresas sejam, de facto, concorrentes do comboio). Mas o número de utentes do comboio mais dificilmente crescerá enquanto subsistirem estes (e outros) obstáculos…
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O certo é que cada supressão que se decide na rede ferroviária, cada linha que se encerra, vai contribuindo irremediavelmente para a perda de utentes do transporte ferroviário em Portugal, que não se resume à perda de viajantes no troço encerrado. Em termos simples: se o utente dispõe de uma ligação ferroviária entre as cidades de Torres Vedras e de Leiria; se o troço entre Caldas da Rainha e Leiria encerra; tendencialmente, o viajante passará a fazer todo o percurso (entre Torres Vedras e Leiria) de autocarro (em vez de passar a apanhar o comboio até às Caldas e o autocarro das Caldas para Leiria), o que significa que o comboio não perde apenas os utentes do troço encerrado entre as Caldas e Leiria: perde também passageiros no troço entre Torres Vedras e Caldas da Rainha (que não encerrou, mas tenderá a ter menor oferta, em consequência da diminuição da procura; e a diminuição da oferta afugentará mais clientes nessa linha...).
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Isto funciona como um cancro para a ferrovia. E desde que no final dos anos 80 se começaram a encerrar linhas e a suprimir serviços de passageiros, reduzindo-se a cobertura territorial da rede ferroviária, o número de passageiros da CP caiu para menos de metade.
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Nada indica, no entanto, que alguma coisa vá mudar neste domínio. Tudo deverá continuar na mesma, incluindo nos discursos e nas declarações de intenções: é previsível que se continue a clamar que é "indispensável” promover a intermodalidade entre o comboio e o autocarro. E, depois, que se continue a diminuir a oferta ou a suprimir ligações ferroviárias por “falta de procura”...
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P.S.  Voltando ao exemplo da Linha de Évora, e segundo documento muito recente da CP, os comboios da modernizada linha têm registado uma baixa procura. Poderá haver quem se apresse a atribuir esse facto à eventual escassa procura de transporte público no trajeto Lisboa-Évora. É um erro. Considerando apenas e tão-só os autocarros da Rede Expressos (note-se, mais lentos do que o comboio e muito mais permeáveis a atrasos), existem nada mais, nada menos do que 20 ligações diárias de Lisboa a Évora (ou seja, só num dos sentidos). Entre as 7h e as 22h há, em média, um autocarro de 45 em 45 minutos a sair de Lisboa com destino a Évora (e à sexta-feira são 22 as ligações). A fraca procura nos quatro (4) comboios diários numa linha modernizada, rápida e com excelentes condições para constituir um caso de sucesso na ferrovia portuguesa é um "mistério" cujas causas talvez devessem merecer um estudo. Ou estaremos a caminho de encerrar a Linha de Évora aos comboios de passageiros?...
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Braga
A azul: estação de caminho-de-ferro; a amarelo: estação rodoviária
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Castelo Branco
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Guimarães
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Beja
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Coimbra
A azul: estação de caminho-de-ferro de Coimbra; a amarelo: estação rodoviária
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Coimbra
A azul: estação de caminho-de-ferro de Coimbra-B; a amarelo: estação rodoviária
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Este artigo foi publicado originariamente neste blogue em Julho de 2012.

O exemplo dado de Castelo Branco está, felizmente, desatualizado. Este ano (2014) foi inaugurado o novo terminal rodoviário de Castelo Branco, localizado junto da estação de caminho-de-ferro, na sequência de um protocolo celebrado entre a câmara municipal e a REFER (em cima da mesa esteve também uma outra localização, do lado oposto da linha férrea, junto a uma via rápida). A cidade e o país ganharam um interface de transportes.

Por seu turno, Torres Vedras era uma das (não muitas) cidades portuguesas que se podiam orgulhar de ter o terminal rodoviário situado perto da estação de caminho-de-ferro. Mas a câmara municipal decidiu alterar a sua localização e hoje, 6 de Outubro de 2014, é inaugurado o novo terminal rodoviário, do lado oposto da cidade, bem distante da estação ferroviária. “Descongestionar o trânsito”, “fluidez de tráfego” e “facilitar o estacionamento automóvel” (junto do terminal) foram os argumentos invocados pela autarquia para a mudança. Desfez-se um interface de transportes públicos.

Não é por falta de consciência do problema que isto acontece. Há décadas que o problema está perfeitamente diagnosticado e vem sendo inclusivamente mencionado nos sucessivos planos nacionais de transportes. No plano 2008-2020, por exemplo, proclamou-se solenemente que «será dada especial atenção à articulação modal e intermodal através da integração física e de serviços, nomeadamente ao nível de infraestrutura e equipamentos de transporte (interfaces de articulação e veículos adaptados à intermodalidade) e de horários». No plano de 2011-2015, lá se fala novamente no «planeamento de uma rede de infraestruturas intermodal, integrada e articulada». Na prática, porém, cada autarquia municipal continua a ter inteira liberdade para decidir da localização dos terminais rodoviários.

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