As proezas do ACP: 3 – A ultrapassagem pela direita numa auto-estrada

I
A Revista do Automóvel Clube de Portugal, distribuída a quase 200 mil automobilistas, responde frequentemente a dúvidas que os sócios colocam sobre as regras do Código da Estrada.

No número de Fevereiro de 2011 da revista, um sócio, referindo-se claramente a uma situação de circulação em auto-estrada, colocava a seguinte questão:

«Se eu circular na faixa da direita a 100 km/h e outro veículo circular a 80 km/h na faixa do meio, posso continuar na minha faixa ou terei de aplicar as regras de ultrapassagem, isto é, abrandar, passar para a terceira faixa e retomar a faixa onde estava (a da direita)»?

A resposta do “Gabinete Jurídico do ACP”:

«A situação descrita pelo sócio vem prevista no Código da Estrada, nos artigos 14.º (pluralidade de vias de trânsito) e 42.º (pluralidade de vias de trânsito em filas paralelas). De acordo com estes artigos, quando, no mesmo sentido, haja duas ou mais filas de trânsito (por exemplo, caso das auto-estradas), os condutores devem circular pela via de trânsito mais à direita, “podendo, no entanto, utilizar outra, se não houver lugar na fila mais à direita, bem como, sempre que o condutor pretenda ultrapassar ou mudar de direcção”.

Por outro lado, o artigo 42.º vem especificamente dizer que, “nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 14.º e no artigo 15.º, “o facto de os veículos de uma fila circularem mais rapidamente do que os de outra não é considerado ultrapassagem para os efeitos previstos neste código”, ou seja, quando o trânsito se processa em filas paralelas de trânsito, quando o veículo da faixa da direita circula a uma velocidade superior ao do veículo da faixa à sua esquerda, não significa que esteja a realizar uma ultrapassagem pela direita, não permitida pelo CE.

A regra geral do CE em matéria de ultrapassagem é a de que esta se deve efectuar pela esquerda (artigo 36.º CE), mas, para além de haver excepções a esta regra, a situação acima descrita não constitui uma ultrapassagem, mas sim a circulação de veículos em filas de trânsito paralelas, a velocidades diferentes”.


Verdadeiramente notável este “aconselhamento” dado pelo ACP a perto de 200 mil automobilistas!!

Vejamos então as regras do Código da Estrada:

Regra geral: «a ultrapassagem deve efectuar-se pela esquerda» (artigo 36.º, n.º 1). O facto de ser uma regra geral significa que é essa a regra que vale em todos os casos, a menos que a situação caiba em alguma exceção prevista no Código da Estrada.

A “exceção” invocada pelo ACP é a referida no artigo 42.º (“pluralidade de vias e trânsito em filas paralelas”). E o que diz o artigo 42.º? “Nos casos previstos nos números 2 e 3 do artigo 14.º e no artigo 15.º, o facto de os veículos de uma fila circularem mais rapidamente do que os de outra não é considerado ultrapassagem para os efeitos previstos neste código”.

Por outras palavras, a situação em que o veículo da via da direita circula mais rápido que o da via imediatamente mais à esquerda, passando-o, é considerada uma ultrapassagem pela direita (e, portanto, proibida), salvo nesses três casos - números 2 e 3 do artigo 14.º e no artigo 15.º.

Ora, quais são esses três casos?

1) Número 2 do artigo 14.º:dentro das localidades, os condutores devem utilizar a via de trânsito mais conveniente ao seu destino, só lhes sendo permitida a mudança para outra, depois de tomadas as devidas precauções, a fim de mudar de direcção, ultrapassar, parar ou estacionar”.

Este artigo só se aplica à circulação dentro das localidades, nada tendo a ver com a circulação nas auto-estradas. Se eu for a circular numa avenida com várias faixas e pretender virar à esquerda num cruzamento mais à frente, a via de trânsito mais conveniente ao meu destino é a da esquerda. É essa que eu devo usar, independentemente de o meu carro circular a velocidade inferior ou superior à dos veículos que circulam nas vias mais à direita.

[Esta regra especial não é sequer aplicável a auto-estradas existentes dentro das localidades, como facilmente se percebe do teor e da razão de ser deste artigo (explicarei melhor esta parte se for necessário).]

2) Número 3 do artigo 14.º: “ao trânsito em rotundas, situadas dentro e fora das localidades, é também aplicável o disposto no número anterior, salvo no que se refere a paragem e ao estacionamento”.

Este artigo só se aplica ao trânsito em rotundas: mais uma vez, não tem nada a ver com a circulação em auto-estrada.

3) Artigo 15.º (“trânsito em filas paralelas”): “sempre que, existindo mais de uma via de trânsito no mesmo sentido, os veículos, devido à intensidade da circulação, ocupem toda a largura da faixa de rodagem destinada a esse sentido, estando a velocidade de cada um dependente da marcha dos que o precedem, os condutores não podem sair da respectiva fila para outra mais à direita, salvo para mudar de direcção, parar ou estacionar”.

O que aqui se prevê é, pois, uma situação muito específica de trânsito muito intenso, em que as vias estão todas ocupadas e a velocidade de cada veículo está dependente da dos que circulam à sua frente.

Fora estes três casos especiais, o facto de os veículos da fila da direita circularem mais rapidamente do que os da esquerda equivale a uma ultrapassagem pela direita, logo proibida (artigos 42.º e 36.º do Código da Estrada).

Muito estranhamente, essas três circunstâncias especiais (interior das localidades, rotundas e trânsito muito intenso com velocidade condicionada) foram ocultadas na resposta dada pelo ACP.

Ultrapassar pela direita numa auto-estrada é perigoso e nas estatísticas nacionais há registo de acidentes graves ocorridos nessas circunstâncias.

O ACP – e a sua revista – têm uma responsabilidade social acrescida. Trata-se de uma revista distribuída a perto de 200 mil automobilistas e é a revista do principal clube automobilístico português, que tem, inclusivamente, uma escola de condução com muitos alunos (não queremos acreditar que na escola de condução do ACP se ensine o que acima se transcreveu…). Os automobilistas tenderão a dar mais credibilidade àquilo que lêem na revista.

Se 200 mil automobilistas tiverem lido aquele texto e tiverem ficado convencidos de que afinal, quando circulam numa auto-estrada, podem ir na via mais à direita a velocidade superior à dos veículos na via à esquerda dessa, passando-os sem que isso seja considerado “ultrapassagem”, o ACP terá prestado um péssimo serviço à segurança rodoviária.

[Enviado em 17/2/2011 à revista do ACP, com pedido expresso para que no próximo número da revista corrijam esta posição - a bem da segurança rodoviária]

ATUALIZAÇÃO (24/3/2011): como se impunha, o ACP, na sua Revista de Março de 2011, corrigiu a informação anteriormente dada, sob a forma de "esclarecimento", deixando claro que nas situações concretas e excecionais previstas nos artigos 14.º, números 2 e 3, e 15.º é que a circulação na via da direita a uma velocidade mais rápida do que a dos veículos que circulam à esquerda não é considerada ultrapassagem pela direita: fora esses três casos excecionais (e ressalvadas as exceções previstas no artigo 37.º), impõe-se a regra geral do artigo 36.º, isto é, terá de ser feita a ultrapassagem pela esquerda. Exatamente como explicámos neste artigo. Saúda-se o ACP pela correção feita e só lamentamos que a ela não tenha sido dado mais destaque (a correção é feita num texto subordinado ao título "esclarecimento", sem se mencionar o assunto, e o título nem sequer está em negrito e em maiúsculas como sucede nas outras secções da mesma página). Resta saber quantos milhares de leitores que foram mal aconselhados no número anterior terão lido este discreto esclarecimento. A segurança rodoviária impunha que tivesse sido dado outro destaque a esta questão.


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