Desastres de viação: as outras vítimas

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Nos últimos 40 anos, os desastres nas estradas em Portugal fizeram mais de dois milhões de vítimas, entre mortos e feridos.

Neste estúpido número não se incluem as outras vítimas

[nota: o caso seguinte é verdadeiro; os nomes citados são fictícios]

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2007. A meio da manhã de um sábado, a Joana e a Ana dirigem-se de Lisboa para Cascais, de automóvel. A Joana vai a conduzir. Tinham passado a noite a divertir-se em Lisboa. A Joana tinha bebido e conduz também sob o efeito de estupefacientes. Está bom tempo e o piso está seco. O carro circula a mais de 80 km/h num local onde a velocidade máxima é de 70 km/h. Vai na via da esquerda, numa estrada de duas vias em cada sentido. A Joana não consegue manter o carro totalmente na sua via e o veículo colide lateralmente com outro que circula na via da direita e que, em consequência do choque, vai embater frontalmente contra um poste de eletricidade. Por seu turno, o carro da Joana vira e depois capota, só parando algumas dezenas de metros depois do embate.

A Joana e o condutor do outro veículo saíram quase ilesos do acidente. Mas a Ana sofreu lesões muito graves. Foi levada de ambulância para as urgências do hospital. Estava consciente. Tinha fortes dores e sofria muito. Foi dessa forma que viveu as últimas três horas da sua vida. Acabou por morrer.

A Ana tinha 19 anos e estava a dias de fazer 20. Era uma rapariga muito feliz, estava no primeiro ano de um curso superior e estava cheia de planos para a vida, que incluíam ir continuar o seu curso para o estrangeiro.

Provou-se, em tribunal, que o desastre se deveu exclusivamente ao facto de a Joana conduzir o carro em excesso de velocidade e sob a influência do álcool e de estupefacientes.

À Joana (de 24 anos de idade) tinha morrido um irmão, alguns anos antes, também num desastre de viação (ia ele a conduzir), circunstância que a tinha abalado muito. A Ana era muito sua amiga e a Joana ficou com grandes sentimentos de culpa e de arrependimento: mais uma pessoa que daria tudo para poder voltar atrás.

Mas os desastres de viação deixam normalmente outras vítimas. Os pais e a irmã da Ana ficaram de rastos. Eram uma família muito feliz e muito unida e a contribuição principal para essa harmonia era, precisamente, da Ana, que todos adoravam. Sem esse pilar, tudo se desmoronou. Todos perderam a alegria de viver.

A Ana era, para a sua irmã Catarina, de 21 anos, a melhor amiga. Desde a morte da irmã, Catarina passou a ter enormes problemas de relacionamento social e mesmo de comunicação, não havendo tratamento médico que a ajude. Chumbou nesse ano letivo e voltou a chumbar no seguinte [desconhece-se a evolução posterior à data da sentença do tribunal].

O desgosto e o sofrimento dos pais da Ana foram enormes. O pai entrou numa depressão, que acabou por o levar a abandonar a atividade de professor universitário. E a mãe entrou numa depressão mais grave [que se mantinha à data da sentença do tribunal] e acabou, por essa razão, por perder o emprego que tinha. É acompanhada psicologicamente há anos.

[No mesmo processo-crime em que a Joana foi condenada a uma pena de prisão de quatro anos e meio pelos crimes de homicídio negligente e de condução sob a influência do álcool e de estupefacientes e em que ficou proibida de conduzir durante três anos, foi ainda condenada a pagar, a cada uma destas outras vítimas, uma indemnização por danos morais de trinta mil euros (a acrescer a uma indemnização pelo sofrimento da Ana nas suas últimas três tristes horas de vida, a pagar aos seus herdeiros: os pais). Mas a indemnização jamais reparará os danos causados.]

Os desastres de viação dão cabo de vidas - e não apenas as de quem é diretamente envolvido neles. O número de vítimas que vem nas estatísticas constitui apenas a ponta de um icebergue.

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As "outras vítimas" referidas no título deste artigo são, obviamente, os pais e a irmã da Ana. Mas pensemos agora na outra vítima, a Ana, que morreu e não ia a conduzir. Conheço muitas pessoas que, no papel de ocupantes de um veículo conduzido por outra pessoa [amigo(a), namorado(a), colega, cônjuge…], se conformam com a condução perigosa deste, e até mesmo quando os seus próprios filhos também são transportados no carro. Depois, casualmente, em conversas sobre o assunto, muitas dessas pessoas acabam por confessar: «ele é doido a conduzir, eu já lhe disse, mas não me ouve, tenta convencê-lo tu…».

Há muito que me recuso a fazer o papel de candidata a vítima. Hoje, quem quer que me ofereça boleia sabe bem que só a aceito se a condução for feita em determinadas condições. O álcool está, obviamente, excluído. E o cumprimento dos limites de velocidade é coisa de que também não prescindo (aliás, exijo o mesmo dos taxistas: era o que faltava colocarem-me em perigo contra a minha vontade e ainda pagar para isso!). Caso contrário, recuso. Tenho amor à minha vida. No princípio, encaravam isto como brincadeira (mais uma da Contestatária!). Mas depois passaram a levar-me a sério. E já levei algumas pessoas a fazer o mesmo, mesmo sem as tentar convencer.

Por amor à vossa vida (e às dos vossos filhos, se os tiverem), deixem de se conformar! A segurança rodoviária também passa muito por aí.

Joana Ortigão
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(publicado originariamente no blogue em Novembro de 2010, por ocasião do Dia Mundial em Memória das Vítimas da Estrada)
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