Elogio da bicicleta

I
“(…) O conceito de um «centro» como lugar de acumulação das funções de uma cidade, rodeado de uma «periferia» como lugar de dispersão e de dissipação, pertence a uma época encerrada. Com o aparecimento do automóvel, o cidadão deixou de precisar de um núcleo aglutinador do comércio, dos serviços e das relações sociais. Pelo contrário, começou a evitá-lo. Ruas estreitas, falta de estacionamento, casas antigas, espaços inadequados.

Esta atracção pela periferia nota-se também na minha cidade, que nas últimas duas décadas alastrou-se às antigas aldeias e campos e serras, espalhando os seus habitantes pelos ermos mais inverosímeis. A linha arquitectónica oitocentista do «antigo» centro ainda aparece sólida e paternal, mas em termos de frequência humana foi substituída por uma constelação de periferias.

A nível económico parece fazer sentido. É mais barato construir novo fora da cidade, que recuperar e reaproveitar o antigo no seu interior. Mas há também custos que inquinam a equação. Como se mede o equilíbrio psíquico e social que advém de caminhar a pé pelas ruas de dimensão humana, cruzar pessoas, cumprimentar conhecidos, respirar a nortada, identificar as próprias raízes com as de uma cidade única e antiga? (…)

Se uma nova guerra de repente alçasse o preço do petróleo a níveis tenebrosos, como nos arranjaríamos nas deslocações entre as várias constelações que formam hoje a cidade moderna? Quem comprou apartamento numa qualquer urbanização a dez ou quinze quilómetros de qualquer outro lugar, que custos teria para chegar ao centro? No caso de uma nova crise petrolífera, tudo iria mudar no mundo (enfim, no Ocidente; no Burundi nem se devia notar). Mas iria mudar particularmente a facilidade insensata com que dispomos do automóvel.

Pensava em todas estas coisas a caminho do bar. Não ia a conduzir. Como habitualmente, dirigi-me ao centro da cidade de bicicleta.


Uma bicicleta é, tal como um diamante, para sempre. Não por acaso, quando queremos dar o exemplo de uma aprendizagem que nunca mais se esquece, dizemos: «É como andar de bicicleta». É um meio de transporte urbano perfeito: não ocupa espaço, não é perigoso de conduzir, é simples de manter e simples de reparar, é extremamente económico, ecológico e duradouro. E, ainda por cima, tem uma série de vantagens homeopáticas que lhe são exclusivas: nenhum outro meio de transporte trata da nossa saúde e forma física enquanto o utilizamos.

Num divertido livrinho sobre cultura quotidiana, La velocidad de las Bicicletas, o mexicano Pablo Gotlieb faz notar que as bicicletas são «um bom remédio para a neurose urbana, não tanto como exercício físico ou terapia ocupacional, mas porque são a negação (…) de muitas causas desta neurose: a poluição, a pressa, a hostilidade, o engarrafamento, etc.».

Um dos grandes mistérios da mentalidade portuguesa é a rejeição linear do uso da bicicleta no dia-a-dia. Com o clima que temos, com a dimensão relativamente contida da maior parte das nossas cidades, com o preço dos combustíveis, com o exército de parcómetros à espreita, não se percebe por que tão pouca gente prefira os pedais para se deslocar.

A bicicleta apenas requer uma pequena disciplina mental, mas que facilmente se desenvolve, quando se troca o uso indiscriminado do automóvel pelo uso militante do selim. Ou seja, a bicicleta obriga-nos a pensar no modo mais lógico e eficiente de efectuar um percurso porque a distância paga-se com o corpo.

A atracção portuguesa pelo automóvel decalca um pouco a atracção portuguesa pela carne. Ingrediente escasso ao longo de gerações, quimera inalcançável durante a penúria salazarista, a carne hoje é utilizada com «excesso de abundância», como se assim Portugal cancelasse uma dívida atávica na ingestão de proteínas. Também o automóvel, acessível a poucos eleitos da nação até há um par de décadas, hoje é visto e usado não como objecto utilitário de deslocação, mas como arma de vingança a todos os autocarros que se atrasaram, a toda a chuva e frio que apanhámos a pé, a todos os quilómetros que tivemos de pedalar ao longo do século vinte, precisamente o século do automóvel.

Vejo regularmente bicicletas a circular pelas ruas das cidades do planeta (*). Nos países pobres é um sintoma de subdesenvolvimento, nos países ricos é uma opção de desenvolvimento. Só nós, com um pé no Sul e outro no Norte, não temos a humildade de seguir pedalando com o resto do mundo".

Gonçalo Cadilhe, 2009

(*) Gonçalo Cadilhe conhece o mundo inteiro. Ganha a vida a viajar, mais precisamente a escrever crónicas das suas viagens - da melhor literatura de viagens portuguesa da actualidade.

Nota: a cidade de Gonçalo Cadilhe, referida no texto, é a Figueira da Foz.

O enigma da bicicleta

I


Vila de Oeiras (região de Lisboa). Estes são os dois parques de "estacionamento" para bicicletas existentes junto da estação de caminho-de-ferro de Oeiras. 

As bicicletas não chegam a 10.

E este é o parque de estacionamento para automóveis existente junto da estação (vista parcial):