Os atropelamentos de crianças, a reação leviana da CML e o silêncio da PSP

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Mais uma vez, as estatísticas revelam que a esmagadora maioria dos atropelamentos de crianças em Lisboa ocorre na proximidade das escolas. A reação dos responsáveis camarários consistiu, fundamentalmente, em criticar os pais «que insistem em transportar os seus filhos de automóvel», uma «arma» que devia ser deixada em casa, não havendo «grande razão para as crianças não irem a pé ou de bicicleta para a escola».

É apropriado comparar o automóvel a uma arma? Sim. É lamentável que tão poucas crianças em Lisboa vão a pé para a escola? Sem dúvida. Mas, apesar de ter dito duas coisas acertadas, a reação da CML é de uma leviandade preocupante.

Reagir aos números dos atropelamentos de crianças afirmando que os pais deviam deixar os carros em casa é uma estratégia de segurança rodoviária, no mínimo, anómala. É como se, perante os tristes números da sinistralidade rodoviária em Portugal, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária resolvesse reagir criticando os portugueses por não deixarem os seus carros em casa. Não resulta.

Embora estejam à vista de todos, diariamente, os comportamentos de risco de muitos pais que levam as crianças de carro à escola, não há, creio, estudo algum do qual resulte que resida nesses pais a principal causa dos atropelamentos. Pelo contrário, os números divulgados revelam que a maioria (61%) dos atropelamentos nas imediações das escolas ocorrem fora dos períodos de entrada e saída das escolas! E mesmo quanto aos 39% de atropelamentos registados nesses períodos, nada indica que se possa imputar aos pais automobilistas a principal responsabilidade pelos desastres. As crianças podem passar a ir todas a pé para a escola e continuar a ser atropeladas!! Ao dirigir a sua reação contra os pais que levam as crianças de carro à escola, a CML parece ignorar ou desvalorizar aquilo que todos os dias vemos nas proximidades dos estabelecimentos de ensino, nomeadamente automobilistas (pais, não pais, viaturas comerciais, taxistas, viaturas pesadas e até veículos da CML) a conduzir a velocidades criminosas e a vergonha do estacionamento de carros em cima de passeios e passadeiras e/ou a prejudicar a visibilidade sobre as crianças nos atravessamentos pedonais. Aliás, como todos sabemos, um pouco por toda a cidade, muitos professores (e outros funcionários) das escolas estacionam irresponsavelmente os seus carros em cima dos passeios e passadeiras enquanto vão dar aulas.

Reduzir os fatores de risco aos pais que não deixam a “arma” em casa é, em suma, de uma leviandade inacreditável. A CML tem obrigação de reagir com mais cautela aos números de sinistralidade, pela mensagem que transmite e pela oportunidade que se perde. Se o objetivo é acabar com esta vergonha, que se enfrente seriamente o problema.  

A verdade é que, se existisse uma vontade séria de resolver o problema, há muito que estaria executado no terreno (pela própria CML, evidentemente) um plano de segurança rodoviária nas imediações das escolas da cidade, nomeadamente com medidas físicas impondo aos automobilistas velocidades baixas de circulação (a CML voltou a recordar a sua necessidade, mas continua sem as implementar) e mediante proteção de passadeiras e passeios da invasão dos automóveis. Desejavelmente convocando o envolvimento da polícia, que tem um programa denominado Escola “Segura” mas tudo tolera em matéria de insegurança infantil rodoviária nas imediações dos estabelecimentos escolares; persistindo a polícia na incompetência a que nos habituou na fiscalização dos comportamentos de risco dos automobilistas na proximidade das escolas, no que ao estacionamento diz respeito, os pilaretes continuam a ser uma solução barata e eficaz. Basta haver vontade.

Dito isto, o apelo a que os pais deixem as “armas” em casa e a que as crianças vão a pé para a escola continua a soar estranho vindo de uma CML que, por ação e por omissão, tem incentivado os automobilistas em geral a utilizar o carro na cidade e desincentivado as pessoas de andar a pé. Porque não nos esquecemos da construção de mais parques de estacionamento subterrâneos, de mais vias rápidas na cidade, de urbanizações de onde os residentes / trabalhadores só saem / entram de carro, da criação de bolsas de estacionamento em ruas onde os passeios são estreitos (ou não existem), da criação de lugares de estacionamento automóvel em cima dos passeios, de novos obstáculos nos passeios, de novas passagens de peões mal desenhadas e/ou construídas, da vergonhosa temporização dos semáforos para peões, etc., etc., etc., tudo isto incluindo zonas circundantes de escolas.

Quanto ao silêncio da polícia face aos números divulgados, hesitamos entre a crítica e o alívio. Porque, infelizmente, quando lhe ocorre falar sobre este assunto sobre o qual tem tanta responsabilidade (por omissão), a polícia costuma centrar o discurso no apelo a que as crianças tenham mais cuidado a atravessar as ruas…

Catarina
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Esclarecimento: não resido, nem trabalho em Lisboa, nem levo crianças à escola de carro.
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