Sinistralidade rodoviária: o que nasce torto...

I

Certa ocasião, quando na ilha do Corvo só havia uma estrada (não pavimentada) de 6 km e os únicos veículos existentes na ilha eram um tractor e um motociclo, os dois tiveram… um acidente: chocaram um contra o outro, numa curva. Cúmulo do azar? Ou cúmulo da inabilidade para conduzir, mal de que parecemos padecer irremediavelmente, cá na nossa terrinha?

Este episódio aconteceu já nas últimas décadas do século XX. Mas não foi propriamente uma novidade. As elevadas taxas de sinistralidade rodoviária em Portugal não surgiram com o aumento do parque automóvel: existem desde que apareceram os primeiros automóveis em Portugal. A condução automóvel, por um lado, e a aversão a regras e a falta de civismo que imperam entre nós, aliadas à estranha incapacidade para compreender que o automóvel é uma máquina potencialmente perigosa, pelo outro lado, desde cedo se revelaram uma combinação explosiva.

Nos primeiros anos do século passado, quando o parque automóvel era ainda quase inexistente, já os regulamentos que estabeleciam as regras de condução alertavam que “podem os automóveis originar graves acidentes e constituir um perigo real, se forem guiados por mãos inábeis e se no seu emprego não houver a necessária atenção e cautela”. Mas, até à publicação do primeiro Código da Estrada (1928), a sinistralidade rodoviária era verdadeiramente terrível, sucedendo-se os desastres e os atropelamentos. Com um parque automóvel inferior a 20 000 veículos, nos primeiros 3 meses do ano de 1927, por exemplo, houve 146 sinistrados e 25 mortos nas nossas estradas.

A situação nas nossas estradas era preocupante. Nos jornais, sucediam-se os conselhos de condução - por exemplo: "A paragem brusca, sobre um obstáculo, de um carro embalado a 75 km/h, produz exactamente os mesmos efeitos que resultariam da sua queda de um 6.º andar. Ao atravessar as povoações, devemos andar devagar e com a máxima cautela. Há que atender aos peões distraídos, aos cães estúpidos e às crianças estouvadas. Um bom condutor não esmaga nada, nem sequer uma galinha". Etc.

Em 1928, publicou-se o primeiro Código da Estrada. Um conjunto muito mais rigoroso de regras estava fixado, mas… as regras não eram cumpridas. E as cifras negras continuaram a aumentar. Em 1931, por exemplo, houve 235 mortos e 3081 feridos. Seis anos depois, 354 mortos e 5023 feridos. E assim continuámos “alegremente”: o resto da história é bem conhecida.

Em 1937 – há mais de 70 anos - realizou-se um Congresso Nacional de Automobilismo. O diagnóstico e as soluções eram unânimes: havia uma elevada taxa de incumprimento do Código da Estrada. Era necessário aumentar a fiscalização e a repressão, nomeadamente sobre o excesso de velocidade. Era preciso fazer campanhas massivas de sensibilização. A formação tinha de começar na infância, nas escolas. Etc... Onde é que já ouvimos isto?...

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