Da impossibilidade de namorar nos separadores das auto-estradas* / Elogio do comboio

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No filme “Antes do Amanhecer”, um filme de culto dos anos 90 (sobretudo no universo feminino), um norte-americano e uma francesa conhecem-se enquanto viajam de comboio na Áustria e acabam por se apaixonar. Algo que muito dificilmente aconteceria numa auto-estrada, um mundo em que os únicos pontos onde as pessoas eventualmente se podem cruzar (se lá pararem) são as áreas de serviço.

No último quarto de século, em Portugal temos vindo a impor progressivamente o meio rodoviário como modo de os portugueses viajarem, sobretudo por via do investimento nas auto-estradas e do desinvestimento na ferrovia.

Em causa está muito mais do que a simples troca de meio de transporte. Pegando nas preciosas palavras de Manuel Graça Dias (que por sinal nem foram escritas especificamente só sobre as auto-estradas e o comboio), poderíamos dizer que a auto-estrada “encosta-nos a uma recusa cada vez maior dos outros, do contributo dos outros, isola-nos, força-nos, empurra-nos para uma «independência» que nega, ou pretende substituir, cada vez mais, a hipótese de solidariedade, da vivência junta, da inteligente concorrência para objetivos mais comuns ou generalizáveis. Excita egoísmos [de que deixar o carro estacionado num passeio ou em segunda fila é, afinal, apenas um reflexo], promove o afastamento, conduz ao oposto de um equilíbrio coletivo.

Há, na substituição direta de um meio pelo outro, uma espécie de «lavagem», de higienização, que recorre a uma diminuição sucessiva da necessidade de «contacto» (…), no progressivamente menor grau de sobreposição e simultaneidade com a fruição dos outros – menores, portanto, as hipóteses de discussão, compartilha (…). Abandona, indiscutivelmente, cada um à «sua sorte», a um «arbítrio» mais solitário e imaturo porque cada vez mais isolado da comprovação e do conflito”.

Graça Dias escrevia isto, não apenas a propósito da troca do comboio pelas auto-estradas, mas, em geral, a respeito de um modo de vida que cada vez mais se tem traduzido noutras trocas (o cinema em casa, as consolas de jogos, as transmissões televisivas de concertos ou eventos culturais ou desportivos, etc.).

Não é por acaso que vivemos em Portugal numa sociedade cada vez mais solitária e individualista, com cada vez menor relacionamento social, em que desaprendemos de aprender com os outros e de ter em conta os outros.

Hoje olho para trás na minha (ainda) curta vida e espanto-me com a quantidade de pessoas que já conheci (e continuo a conhecer) em viagens de comboio, os bons momentos que me proporcionaram (muitos deles inesquecíveis) e o quanto amadureci com elas. Muitos nunca voltei a ver, mas alguns ficaram amigos para toda a vida. Com todos eles aprendi muito (muitíssimo). Sem eles, não seria hoje a Joana que sou. Sem eles, se calhar este blogue nem sequer existiria.

Ao contrário do que sucede com uma viagem numa auto-estrada, todo o tempo que demora uma viagem de comboio é tempo útil [e é, por isso, um erro crasso pensar-se que se uma viagem de comboio for mais demorada, se perde tempo em relação à opção da auto-estrada: é sempre tempo ganho]. Pode ler, escrever, trabalhar, dormir, conversar tranquilamente, jogar e até (exclusivo do comboio) levantar-se, esticar as pernas e ir até à carruagem-bar. Ou simplesmente olhar longamente pela janela, apreciando a paisagem [apreciando mesmo – coisa impossível numa auto-estrada] ou pensando. Pensando apenas, como fez durante duas semanas de férias, a olhar pela janela do comboio, o protagonista norte-americano do filme “Antes do Amanhecer” [temos cada vez menos disponibilidade para pensar]. Perdi a conta ao número de boas ideias (profissionais e não só) que tive enquanto viajava de comboio. Uma delas levou-me a uma mudança radical na minha vida profissional (para muito melhor).

Nos últimos 25 anos, tornou-se mais difícil fazer viagens de comboio pelo país (desde logo, porque há muitas zonas de Portugal onde o comboio já não chega). Mas sempre que possível, não hesite em trocar a perigosa auto-estrada (o meio mais aborrecido de viajar) pelo seguro comboio. É tempo (e qualidade de vida) que ganha na sua vida. Vale a pena, mesmo que não venha a conhecer num comboio o grande amor da sua vida.
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(montagem com algumas cenas dos minutos iniciais do filme “Antes do Amanhecer”)
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Este texto (como muitos outros deste blogue) foi redigido durante uma viagem de comboio. São apenas ideias ou tópicos para um artigo, que acabou por ser abandonado (uma vez que esta série de artigos sobre as auto-estradas já vai muito longa). Talvez um dia o venha a desenvolver. O tema merece.


*Título de uma crónica de Manuel Graça Dias publicada no jornal Expresso há meia dúzia de anos.

Auto-estradas e assimetrias regionais / Palavras ditas (20)

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(tópicos para um artigo abandonado*)
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Este é o mapa das auto-estradas portuguesas. Por ele podemos verificar facilmente como existe um enorme desequilíbrio entre o litoral e o interior. Apenas cinco entre as dezenas de auto-estradas construídas em Portugal se situam também no interior do país. Mas se olharmos para um mapa de Espanha, de França ou da Alemanha, constatamos que nesses países a rede de auto-estradas está distribuída por todo o território nacional.

Se tivermos em conta a proporção do número de quilómetros de auto-estrada construídos no interior em relação à rede nacional de auto-estradas, verificamos que ela não anda longe da percentagem de população portuguesa que vive no interior. Ora, o desequilíbrio litoral / interior em termos de PIB é ainda maior do que o demográfico. O que significa que, comparando a proporção do número de quilómetros de auto-estrada construídos com a proporção de riqueza produzida no interior, podemos concluir que a primeira é maior, pelo que teria até havido uma discriminação positiva do interior.

Os termos da comparação é que não são correctos. Haveria antes que calcular quanto dinheiro é que o país gastou em todas as auto-estradas construídas e qual a percentagem do gasto feito no interior, comparando-a depois com a contribuição do interior para o PIB nacional. Se um dia se fizer esse estudo comparativo, os resultados indicarão seguramente que o interior foi, uma vez mais, negativamente discriminado: o preço do quilómetro de auto-estrada no litoral é, em regra, muito mais elevado do que no interior, por se tratar de uma zona com maior densidade populacional e sobretudo tendo em conta a parcela das expropriações, principalmente nas auto-estradas construídas em zonas urbanas, onde o preço por metro quadrado de terreno é descomunalmente mais elevado do que no interior do país. Vale a pena recordar que 20 das auto-estradas portuguesas foram integralmente construídas nas zonas de Lisboa e do Porto (e que nove outras auto-estradas passam também por estas duas regiões).

Por outro lado, se quisermos mesmo corrigir as assimetrias regionais entre o litoral e o interior (as quais, de resto, acabam por prejudicar todos os portugueses), não se pode investir no interior na mesma proporção da riqueza aí produzida: o investimento terá de ser maior.

Não estamos, obviamente, a sugerir que se deviam ter construído auto-estradas também no resto do território, para se obter uma distribuição equitativa pelo território nacional (pelo contrário, como já explicámos noutro artigo desta série). O que o mapa de cima mostra é como através das auto-estradas se aplicou um investimento brutal (estamos a falar de infra-estruturas muito caras) no litoral, sugando muitos recursos do país, uma vez mais em detrimento do interior, que carece de investimentos produtivos e de incentivos (que ajudem a fixar e aumentar a população).

Os autarcas e as populações do interior, cansados de décadas de ostracismo, reclamam: «também temos direito às auto-estradas, temos sido discriminados!». É um facto: a discriminação tem existido. E por isso o poder vai cedendo, corrigindo um erro com outro erro: quando os governantes se deslocam às regiões do interior, vão prometendo novas auto-estradas. Não é já a análise custo / benefício que interessa fundamentalmente, mas a “correção de uma injustiça”: porque é que o litoral há-de ter auto-estradas e o interior não? Os autarcas e as populações locais esfregam as mãos de contentamento: finalmente, vão ter também a sua auto-estrada. Mas, no fundo, o que esses autarcas e populações estão a pedir é: «cometam outra vez o mesmo erro, mas desta vez connosco»…


*Dado que esta série já vai muito longa, decidimos abandonar alguns dos artigos inicialmente planeados. Este é um dos artigos relativamente aos quais só foram redigidos alguns tópicos. Uma vez que o blogue vai acabar em breve e não haverá outra oportunidade para desenvolver este tema, optámos por publicá-lo assim.


Palavras ditas (20)

«Não é só o litoral que precisa de auto-estradas. O país inteiro precisa de infra-estruturas e os portugueses têm de ser tratados todos da mesma maneira, quer seja no litoral, quer seja no interior».

Jorge Coelho, Outubro de 2009.

Auto-estradas e exclusão social

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À primeira leitura, o título deste artigo poderá suscitar alguma perplexidade, uma vez que nos têm apresentado as auto-estradas como instrumento de coesão territorial e social.
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Mas se pensarmos que apenas parte da população possui automóvel, o título começará a não parecer tão despropositado.
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Como não nos temos cansado de repetir, o excesso de construção de auto-estradas tem constituído um enorme incentivo à utilização do automóvel particular, em prejuízo, designadamente, da qualidade de oferta do transporte público (ferroviário e não só).
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Se isto não parece tão evidente nas metrópoles, nem nos eixos com maior procura de deslocações (onde a auto-estrada até veio permitir, em muitos casos, viagens de autocarro mais rápidas), a verdade é que fora dessas situações, em muitas zonas do país, a procura do transporte público baixou para níveis tais que determinaram, quando não mesmo o cancelamento de rotas, uma diminuição - por vezes forte - da sua frequência, gerando um círculo vicioso que vai agravando o problema, uma vez que o decréscimo de qualidade do serviço prestado pelo transporte púbico conduz, por seu turno, a uma maior diminuição da sua procura.
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Pelo país fora, muitas pessoas deixaram de ter meio para se deslocar.
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Os exemplos sucedem-se e deles vamos tendo, de vez em quando, eco nos meios de comunicação social (nomeadamente, televisão, rádio e jornais), que surgem como último recurso de reclamação para quem não obtém resposta satisfatória dos poderes públicos. Não há muito tempo, era relatado o caso do transporte público entre duas cidades alentejanas que, face à enorme redução da procura, tinha passado de cinco autocarros diários em cada sentido para apenas um. Naturalmente, há quem não encaixe nos horários do único autocarro existente e fique pura e simplesmente privado de transporte: pessoas há que foram obrigadas a desistir de empregos.
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Se isto poderá parecer estranho a quem tem automóvel, pense-se que há quem nunca tenha conseguido tirar a carta (há gente que não tem qualquer aptidão para conduzir – embora isso em Portugal não constitua grande obstáculo a tirar a carta), há quem nunca tenha tido dinheiro para a tirar, há quem não possa conduzir por motivos de saúde (deficientes, doentes cardíacos, pessoas com propensão para grandes quebras de tensão e muitos outros) ou por motivos legais, e há muito boa gente que não tem carta e/ou automóvel por outras razões (por exemplo, por opção).
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Estes são os novos discriminados em Portugal.
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Há algumas semanas, Marina Araújo, jornalista estagiária, descrevia, num jornal regional das Caldas da Rainha, a sua odisseia quando o curso que escolheu tirar a obrigou a ir para Abrantes.
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No país das maravilhosas e rápidas auto-estradas, das Caldas da Rainha a Abrantes passou a ser “um pulinho”, através da A15, da A1 e da A23:
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(para ampliar, clicar no mapa)I
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Cento e quinze quilómetros. A viagem de automóvel demoraria cerca de hora e meia por auto-estrada. Mas, como muito mais gente, Marina não tinha automóvel, nem sequer carta de condução. Para ir das Caldas a Abrantes ao domingo e de Abrantes às Caldas à sexta-feira, só de transporte público.
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Marina começou por tentar o comboio – uma vez que a Linha do Oeste passa nas Caldas da Rainha. Mas descobriu depressa que para ir das Caldas a Abrantes teria de fazer um desvio absurdo, dada a inexistência de uma linha férrea no sentido Poente-Nascente [a REFER elaborou recentemente um estudo de reativação de uma linha existente entre Santarém e Rio Maior, que seria complementada com uma curta linha entre Rio Maior e as Caldas, mas concluiu que não valia a pena]. Assim, Marina tinha de apanhar o comboio para Norte, até Alfarelos, e em Alfarelos teria de apanhar outro comboio para Sul, até ao Entroncamento, dando esta volta:
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(para ampliar, clicar no mapa)
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Ou então apanhava um comboio para Sul, até Lisboa, e em Lisboa apanhava outro comboio para Norte, até ao Entroncamento, dando esta volta:
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(para ampliar, clicar no mapa)
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Do Entroncamento, tinha comboio directo para Abrantes.
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Em qualquer das hipóteses, a viagem nunca demoraria menos de 4h30m e os bilhetes custariam cerca de 20 euros.
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Afastada a hipótese do comboio, Marina optou pelo autocarro, mas o cenário não era muito mais risonho. Autocarro direto, não existia. Estudou outras opções. A primeira era apanhar um autocarro às 15h para Leiria e outro daí para Abrantes. Uma segunda opção era apanhar um autocarro das Caldas para Lisboa às 16h e daí outro para Abrantes. Em qualquer dos casos, teria de esperar muito tempo no transbordo. Na melhor das hipóteses (por Leiria), a viagem demorava 4 horas (um dia Marina demorou sete: saiu das Caldas às 15h e chegou a Abrantes às 22h).
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No sentido Abrantes - Caldas, tudo piorava. O último autocarro partia de Abrantes às 15:30h de sexta-feira. Com aulas até mais tarde, a única alternativa era apanhar um autocarro expresso para Santarém e em Santarém apanhar uma carreira para Rio Maior (com o risco de perder esta se aquele expresso chegasse atrasado). A partir de Rio Maior é que era pior: não havia transporte – só se alguém fosse buscar Marina de carro para a levar às Caldas (30 km).
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A solução do comboio era má. A do autocarro, má era. Marina tentou uma solução combinada, no sentido Caldas – Abrantes: das Caldas até Santarém ia de autocarro e de Santarém a Abrantes ia de comboio. O preço desta opção até era o mais barato. Mas quando tentou esta hipótese, teve a má surpresa de verificar que a estação de caminho-de-ferro de Santarém ficava fora da cidade, bem longe da estação de camionagem, e só apanhando um táxi é que conseguiria chegar a tempo de apanhar o comboio. A solução tornava-se mais cara.
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Num ano, Marina lá teve um semestre em que à segunda-feira só tinha aulas à tarde. Saía às 8:15h das Caldas, num expresso até Torres Novas, onde chegava às 10:00h. Em Torres Novas, esperava duas horas pelo autocarro que a levava a Abrantes, onde chegava às 13:30h, ao fim de 5h15m de viagem.
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Entre as cidades das Caldas da Rainha e de Abrantes são 115 quilómetros em auto-estrada e apenas 100 quilómetros por estrada. Mesmo tomando como referência o trajeto mais longo (115 km), podemos concluir que para Marina as 4h30m da viagem de comboio significavam, na prática, uma média “estonteante” de 25 km/h. Na primeira hipótese de autocarro considerada (4 horas de viagem), a média subia para uns maravilhosos 28 km/h. Na segunda hipótese (5h15m de viagem), a vertiginosa média era de 21 km/h.
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No país das rápidas auto-estradas.
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A cidade das Caldas da Rainha fica no litoral. A cidade de Abrantes é tão interior como Penafiel ou Guimarães. Agora imagine-se como se passam as coisas na faixa mais interior do país, onde a situação é muito mais grave. Um «erro histórico e irrecuperável», como afirmava recentemente a especialista em geografia humana Fernanda Cravidão a propósito do completo abandono a que foi votado o interior do país em termos de transportes públicos. Daí até ao despovoamento é um pulinho rápido.
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Ana Figueiredo
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Fonte: crónica da Gazeta das Caldas de 3/9/2010 "Das Caldas da Rainha para Abrantes – uma aventura em transportes públicos".

Oásis naturais nas auto-estradas?

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Desde que tenham vegetação autóctone adequada, as bermas das auto-estradas «podem ser excelentes locais de biodiversidade» animal e vegetal, nas palavras de João Fernandes, Professor da Universidade de Évora.

Isto pode parecer surpreendente, mas é não é difícil explicar. As auto-estradas são caracterizadas por serem vias fechadas: vedadas em toda a sua extensão, nas suas bermas não circulam animais de grande porte, nem pessoas. Assim, e no que respeita à vegetação, neste pedaço de mundo natural quase isolado do exterior, as plantas que aqui crescem não são, nomeadamente, perturbadas pela presença animal ou humana (pastoreio, actividades agrícolas, pessoas a caminhar sobre as plantas, etc.), originando condições únicas para o seu desenvolvimento e permitindo, por exemplo, exportar para os campos vizinhos sementes que nestes não se conseguiriam desenvolver.

Nestas zonas cresce uma flora cuja riqueza é ainda muito desconhecida.

Na União Europeia, os especialistas reclamam a publicação de uma diretiva que obrigue as entidades gestoras das auto-estradas a plantar nas bermas plantas autóctones.

Sem esperar pela diretiva, o Governo francês decidiu recentemente renaturalizar 12 000 quilómetros de taludes de auto-estrada nos próximos três anos, mediante plantação, nas “bermas” de auto-estrada, de plantas autóctones, através das quais se pretende criar condições para que as abelhas e outros polinizadores se sintam bem no local e para que, por seu turno, estes polinizem as culturas agrícolas vizinhas.

E nesta nossa terrinha? Saiba mais nesta pequena reportagem do Biosfera [onde também podemos ficar a saber, por exemplo, que a plantação, nas bermas, de determinadas espécies arbóreas permite criar, em regra, barreiras sonoras mais eficazes (e muito mais baratas) do que aquelas estruturas feias que conhecemos, bem como filtrar a passagem de gases poluentes]:
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Usar as auto-estradas para produzir energia?

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Dois jovens cientistas portugueses estão a tentar dar novos usos aos nossos três mil quilómetros de auto-estradas.

Nos Estados Unidos da América, há anos que tem vindo a ser investigada a produção de energia mediante a colocação de painéis solares no pavimento de estradas - sem grandes perspetivas de algum dia vir a ser posto em prática.

Nomeadamente em Israel, já tinha sido investigada a produção de energia elétrica através do movimento de pressão da superfície de uma estrada à passagem de um automóvel (sistema de piezoeletricidade). O sistema funcionaria através de blocos com materiais cerâmicos suscetíveis de captar a energia mecânica do movimento. O custo muito elevado do sistema tornou-o, contudo, comercialmente inviável.

Em Portugal, dois jovens investigadores - Filipe Casimiro, de 24 anos, e Francisco Duarte, de 26 - têm vindo a desenvolver, na Covilhã, um sistema diferente (embora baseado na mesma ideia), designado Waynergy e centrado antes no sistema eletromagnético, mais vantajoso do que o piezoeléctrico.

Há alguns meses, os dois investigadores criaram um primeiro protótipo, concebido ainda para velocidades de circulação baixas (mediante a instalação de blocos, por exemplo, em passadeiras com lomba – por exemplo para fornecer energia a candeeiros públicos - ou em portagens de auto-estrada – possibilitando que toda a energia necessária para fazer funcionar uma portagem seja proveniente deste sistema), mas continuaram a investigar, no sentido da criação de blocos suscetíveis de gerar energia mesmo a velocidades elevadas, designadamene numa auto-estrada. A patente está já registada em Portugal.

O inovador projeto começou por vencer o concurso de ideias winUBI (Universidade da Beira Interior). No mês passado, os dois investigadores venceram o Prémio Inovação EDP Richard Branson (a escolha do vencedor foi feita pelo presidente da Virgin, Richard Branson), cujo valor monetário (50 mil euros) irá ser utilizado na criação de uma empresa (a Waynergy) através da qual pretendem colocar o protótipo no mercado. Na semana passada, foram premiados pelo ISCTE e pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), entre 95 candidaturas. O simples facto de terem sido finalistas deste último prémio trouxe-lhes potenciais investidores e clientes, estando já previstas instalações do sistema para os próximos tempos.

O único senão deste sistema é que só é viável desde que haja bastante movimento. Muitas auto-estradas portuguesas nunca virão, pois, a recebê-lo. Quanto às restantes, o movimento durará enquanto o preço dos combustíveis o permitir…

[Resta, claro, a hipótese de utilizar o sistema noutros locais, sendo que pode ser instalado mesmo em interiores, como centros comerciais]

Pequena reportagem do Biosfera sobre este projecto:
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Fontes (além desta reportagem do Biosfera):
- artigo da Gazeta do Interior de 13/10/2010 "Inovação abre oportunidades a novas empresas da região"
- artigo do Expresso de 20/9/2010 "Waynergy vence prémio inovação Richard Branson"

Palavras ditas (19) ou As auto-estradas e a atrofia do crescimento económico

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"A partir de uma certa altura, [investir em auto-estradas] deixou de trazer qualquer benefício palpável. Terá algum benefício marginal para as pessoas que vivem na proximidade da auto-estrada, mas para a comunidade como um todo, o custo global que impõe sobre a economia não justifica o benefício marginal que vai trazer".

"Ao longo destes anos, todo o sistema de incentivos que as políticas públicas geraram foram para direcionar o investimento e os recursos produtivos para o sector não transacionável da economia (…). Deixou de ser atrativo investir em actividades que são aquelas que têm maior capacidade de aumentar a produtividade, de reduzir o défice externo e de aumentar o crescimento (…).

Por princípio, as pessoas reagem a incentivos. Se é mais rentável investir numa atividade que seja do setor não transacionável, eu enquanto investidor vou investir nessa atividade. [Imagine que tem] muito dinheiro para investir, e que tem duas alternativas: ou monta uma fábrica de calçado – e portanto faz os seus estudos, mas vai depender se a procura vai evoluir muito ou pouco, se os seus concorrentes vão ser muito agressivos (…) – ou então tem a possibilidade de construir uma auto-estrada, onde o Estado lhe garante a rentabilidade desse investimento, porque garante-lhe a procura ou garante-lhe a margem desse negócio. Onde é que vai investir?..."

Vítor Bento, economista e Conselheiro de Estado, 20 de Outubro de 2010

Uma conversa portuguesa

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Uma conversa numa esplanada lisboeta, numa manhã de Outubro (2010):

- Olhó Carlos! Chegas atrasado, pá!

- Desculpem lá! Apanhei engarrafamento na A5 e depois à entrada em Lisboa estava um pandemónio!

- Ó pá ó Carlos, quando está assim tão mal, eu vou pela A16 e depois meto pela A36 [CRIL]. Ou então vou pela A16 até Ranholas, depois meto pela A37 [IC19] e se a Segunda Circular estiver muito mal apanho depois a A36 até Algés. Alternativas não te faltam, pá!

- Pois, mas o problema é quando já te meteste na A5 e já estás no engarrafamento, ficas sem saída.

- Nada disso! Fazes assim: sais da A5 e entras na A9 e vais até à A37 ou até à A16 e continuas para Lisboa, onde podes apanhar a A36.

- A A16 ´tá estupenda!

- Espectáculo!

- Em Lisboa é que não há nada a fazer: afunila tudo. Devia-se investir mais em bons acessos dentro da cidade.

- Concordo: a gente na A5 tem 4 faixas de rodagem e depois chega a Lisboa e é o que é!

- Quatro faixas, João? A A5 só tem 3 faixas!

- Eu estou a contar com a berma. Para mim é a fast lane. Às vezes quando ‘tá muito mal meto os quatro piscas e a sirene que comprei e avanço pela “quarta faixa”, eh, eh.

- E nunca foste apanhado?

- Apanhado? Duuhhh! Achas que a polícia se mete em engarrafamentos para ir multar a malta?

- Mudando de assunto: amanhã vou ao Porto. Só volto na quinta.

- Ao Porto? Vais de comboio ou de carro?

- Não te metas no comboio, pá! Um dia aconselharam-me a ir e o comboio chegou ao Porto com uns 15 minutos de atraso! G’anda seca!

- Estou a pensar ir pela A16, depois pela A9, sigo pela A10 até à A1 e continuo pela A1 até ao Porto. Parece-me mais simples. A outra é mais complicada.

- Olha que não. Vais pela A16, depois A9, viras para a A8, continuas na A17 até Aveiro, em Aveiro viras para a A25, depois metes na A29. Antes de chegares ao Porto, podes escolher a A1 ou a A20. Eu prefiro assim. Há troços onde andas muito à vontade, quase não têm movimento.

- Espectáculo!

- A A1 tem mais movimento, mas ‘tá altamente, agora com as três faixas até Torres Novas! E as áreas de serviço são melhores.

- As áreas de serviço? Achas? Porquê?

- Gajas boas! Uma vez até almocei duas vezes seguidas: estava lá uma equipa de voleibol feminino!

- Eh eh!

- Dois almoços? Deve-te ter custado uma pipa de massa – numa área de serviço…

- Eu quando o serviço é bom não me importo de pagar mais. Olhó Miguel!! Só agora, pá? Então vimos todos da mesma rua e tu só chegas uma hora depois?

- Engarrafamento, o que é que querem?!

- Vieste por onde?

- Pela A5 até Alcabideche, depois pela A16 e depois pela A36. Mas a coisa hoje estava negra na A16: um camião despistou-se!

- Fazia falta uma auto-estrada entre a A16 e a A37 ou entre a A37 e a A5. Ainda há engarrafamentos e é necessário escoar o trânsito.

- iá, concordo!

- Com o último troço da A36 [CRIL] acho que vai melhorar muito.

- Pois é, e está quase! Já tirei o dia de férias para o dia da inauguração! Quero ser dos primeiros!

- Ih, sacana! Olha, eu fui dos primeiros a andar na A16. Até tenho fotografias.

- No fim-de-semana passado fui experimentar a A13. Muita fixe! É sempre a andar, não tem movimento nenhum! E dizem que vai ser prolongada até à Golegã!

- Espectáculo!

- Vais só ao Porto, Nuno?

- Não sei. Sou capaz de aproveitar para ir também a Lousada. Há ali umas auto-estradas que ainda não conheço. Ainda não decidi: ou vou pela A20, depois meto pela A3, depois A4, depois A41 e depois A42. Ou então vou pela A20, depois A3 e depois A42. Ou vou simplesmente pela A20, depois A3, depois A4 e depois A11. Ter três alternativas é lixado! Não sei qual escolher.

- Olha, se fores a Lousada, uma coisa que te aconselho, se tiveres tempo, é p’a ires a Vila Pouca de Aguiar, a paisagem ‘tá fixe agora no Outono, com as vinhas e assim. Tens duas formas de ir: vais pela A11 e depois metes pela A7, que é uma maravilha, não tem movimento nenhum! Ou então desces pela A11, metes pela A4 até Vila Real e depois apanhas a A24.

- Isso não dá, pá! A A4 de Amarante a Vila Real ainda está em construção!

- Ah, pois é, já me esquecia! Vai ser outra auto-estrada altamente!

- Vai ter o maior túnel da Península Ibérica!   

- Espectáculo!

- Não há dúvida que este país evoluiu bué!

- Podes crer!

- É verdade, e esta crise?! Não é que me vão cortar 10% do salário?!

- É um escândalo!!! Dizem que falta dinheiro! Falta dinheiro uma ova!! Gastam é o dinheiro todo no TGV e nos salários deles!

- Gatunos!

- Apoiado!
(…)

Esta conversa aconteceu mesmo, enquanto eu esperava por uma pessoa, embora não exatamente nestes termos. Foi bastante apimentada com a minha imaginação. Qual será a parte verdadeira e qual será a parte inventada?...

Às vezes desconfio que muitos portugueses devem sonhar à noite com auto-estradas.

O lançamento de uma nova auto-estrada

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Antes da conferência de imprensa de ontem, na qual o Governo anunciou o lançamento de uma nova auto-estrada, o blogue A Nossa Terrinha conseguiu infiltrar na sala onde decorreu a reunião do Conselho de Ministros um inseto com um nanomicrofone e pudemos, desta forma, escutar parte da reunião, até ao momento em que o animal foi liquidado por um dos governantes:


[nota: não conseguimos identificar os autores das vozes escutadas]

(…)
- …almente, meus caros, a hora é de gravidade. O país está numa situação difícil e o povo está muito descontente com as medidas de austeridade que fomos obrigados a tomar.

- Muito descontente, muito descontente… Precisamos de fazer alguma coisa.

- Temos de pensar um projeto global para o país a médio e longo prazo, bem sustentado e articulado. Aproveitando o know-how das universidades, as propostas da sociedade civil, os bons exemplos de outros países, a…

- Porque não lançamos antes uma auto-estrada?

- Boa!

- Grande ideia, pá!

- Apoiado!

(aplausos)

- Os portugueses ficam sempre satisfeitos com uma nova auto-estrada. E a nós não nos dá trabalho nenhum: encomendamos os estudos, abrimos o concurso, nomeamos um júri, adjudicamos a obra e já está!

- É isso!

- Vamos nessa!

- Mas onde?

- Ah, mas eu trago trabalho de casa feito! Apresento-vos a nova auto-estrada entre A-do-Pinto e Corte de Pão e Água!

(silêncio prolongado)

- Hmmm… porreiro, pá! E isso fica onde?

- No Alentejo profundo. No Alentejo mais desertificado. Fica mais ou menos entre Serpa e Mértola. Pensem bem: anunciamos a auto-estrada como forma de pôr termo ao enorme despovoamento dessa região, em nome da coesão territorial, em prol do desenvolvimento e do turismo, da…

- Do turismo?

- Sim, esta é a melhor parte: a auto-estrada passará pelo Pulo do Lobo!

- Pule do quê?

- Pulo do Lobo.

- Não conheço.

- Nem eu.

- Mas com a auto-estrada vão poder conhecer: lá está! Hoje, para ir ao Pulo do Lobo, só em estradinhas de terra batida, o que desencoraja os turistas. Com a auto-estrada, a afluência de turistas vai aumentar muito.

- Brilhante! Lembram-se quando o Cavaco era primeiro-ministro e foi ao Pulo do Lobo, com o carro de Estado por caminhos de terra batida? Nós vamos mostrar a esse senhor que evoluímos muito desde essa altura!

- Mas nós temos dinheiro para essa auto-estrada? É grande?

- Tem uns 50 quilómetros. Não, é claro que não temos dinheiro! Tem de se fazer uma PPP. Olha um inseto, mata!

- Já o apanhei, olha…
(…)

Na conferência conjunta do Ministro da Economia e do Ministro das Obras Públicas, realizada após a reunião, foi anunciado o lançamento da nova auto-estrada. Foi salientado que o projeto vai originar a criação de postos de trabalho, vai permitir encurtar significativamente os atuais tempos de deslocação, «permitindo ganhos de tempo e de dinheiro», vai reduzir substancialmente a sinistralidade rodoviária («com grandes benefícios económicos e sociais»), vai contribuir para o desenvolvimento económico da região e fomentar «de forma extraordinária o turismo, mediante a construção de acessos ao Pulo do Lobo que finalmente dignificam este nosso belo recanto natural e contribuirão para um grande aumento na afluência de turistas a este local, atualmente sacrificado com péssimos acessos que afugentam os turistas». Foi ainda referido que no Pulo do Lobo vão ser criadas «todas as condições» para os turistas, nomeadamente uma área de serviço, relativamente à qual várias cadeias internacionais de restauração já mostraram interesse. A terminar, e depois de referir que a nova acessibilidade vai «permitir finalmente travar o despovoamento da região» e que a relação custo-benefício da obra é «globalmente positiva», estas palavras do Ministro das Obras Públicas: «Mas é sobretudo uma palavra de solidariedade que quero aqui hoje deixar. Solidariedade para com toda uma região. Solidariedade para com uma causa. Solidariedade para com uma população esquecida durante décadas e que agora vê finalmente a oportunidade do desenvolvimento, a oportunidade do progresso, a oportunidade de apanhar o comboio da modernidade».

Aproveitando a boleia da palavra «comboio», um jornalista inquiriu os dois ministros sobre eventuais projetos ferroviários para o Alentejo, mas os governantes manifestaram a sua indisponibilidade para responder a perguntas.

Catarina

Fonte: obviamente, a minha imaginação

Antes, éramos só doidos

I
«Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:


- É sempre assim, esta auto-estrada?

- Assim, como?

- Deserta, magnífica, sem trânsito?

- É, é sempre assim.

- Todos os dias?

- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.

- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?

- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.

- E têm mais auto-estradas destas?

- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.

- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?

- Porque assim não pagam portagem.

- E porque são quase todos espanhóis?

- Vêm trazer-nos comida.

- Mas vocês não têm agricultura?

- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.

- Mas para os espanhóis é?

- Pelos vistos...
(…)
Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo.
(…)
Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:

- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?

- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:

- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!».


Excerto de crónica de Miguel Sousa Tavares publicada no jornal Expresso em Junho de 2009

A rede portuguesa de auto-estradas: motivo de orgulho? (11)

I
(continuação) (clique aqui para ver a décima parte)

Em conclusão, por muito que nos tentemos convencer do contrário, Portugal não tem mais justificação para as auto-estradas do que os outros países da União Europeia. Pelo contrário: não é um país rico. Se tudo quanto ficou dito neste artigo fosse irrelevante, sobraria sempre este argumento decisivo.

Não vivendo nós num país rico, todos devíamos ficar perplexos com o facto de as análises de custo/benefício das novas auto-estradas nunca incluirem alternativas, mas apenas e tão-só a situação preexistente. Compensa assim tanto construir uma auto-estrada até Bragança, bastante mais cara do que uma estrada? E se se optasse antes por uma requalificação do atual IP4, que em grande parte da sua extensão é uma boa estrada, eventualmente acompanhada da construção de uma linha férrea ou da requalificação e prolongamento da encerrada Linha do Tua? Em termos de custo benefício, quais seriam os resultados dessa análise comparativa?

Apesar de não sermos um país rico, não tem havido a mínima preocupação em poupar na construção de auto-estradas. E não são apenas as auto-estradas construídas sem volume de tráfego que as justificasse, ou as caríssimas e disparatadas auto-estradas urbanas e suburbanas. É também a quantidade de auto-estradas paralelas a outras auto-estradas que se vão construindo pelo país fora.

Este é, por enquanto, o exemplo mais absurdo:
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A azul e a vermelho, estão destacadas, respetivamente, as auto-estradas A29 e A1, que passam uma ao lado da outra. O absurdo é tal que se chega ao ponto de estar numa das auto-estradas e se poder dizer adeus a quem está a passar na outra ao lado (e isto não é ficção: é mesmo verdade).

Sem surpresa, nesta zona, a auto-estrada A1, recentemente alargada, regista agora um tráfego inferior àquele que determinou o seu alargamento...

Apesar de tudo isto, está projetada uma terceira auto-estrada para passar ao lado destas duas, destacada a preto neste mapa. São três auto-estradas num corredor com a largura máxima de dez quilómetros.

[Precisamente nesta zona, a Linha do Norte está particularmente saturada e - pior - a precisar muito de obras: mas "não há dinheiro"...]

Outros exemplos sucedem-se pelo país fora. A já referida auto-estrada A10 (a preto) corre paralela à A1 (a azul): apenas veio encurtar um pouco (quase nada) a ligação entre Alverca (A9) e o Carregado (A1):
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Esta é a tal auto-estrada com três faixas de rodagem e cujo tráfego é tão reduzido (porque será?...) que nem a sua construção se justificava.

No litoral centro, mais duas auto-estradas "gémeas": as auto-estradas A8 e A1, junto a Leiria:
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(a preto: as auto-estradas existentes nesta zona)

Ao lado destas duas, está a ser construída uma terceira auto-estrada (entre Tomar e Coimbra).

Estes são apenas três exemplos. Basta olhar para um mapa atualizado de Portugal para constatar que há muitos outros casos.

E este é o mais recente exemplo de desperdício de dinheiros públicos:
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A preto, as auto-estradas já existentes. A vermelho, a (discutível) auto-estrada presentemente em construção, entre Amarante e Bragança, que até Vila Real se desenvolve cerca de 20 quilómetros abaixo da já existente auto-estrada A7. Se se aproveitasse esta auto-estrada (uma das que tem um tráfego muito baixo…), evitava-se construir o troço Amarante-Vila Real [ou mesmo também o troço de Vila Real a Murça – neste último caso, bastaria construir o pequeno troço destacado a azul (onde atualmente passa a N212)]. Perder-se-iam uns poucos minutos nos tempos de deslocação (dependendo dos pontos de partida e de destino), mas poupar-se-ia muitíssimo dinheiro: o troço entre Amarante e Vila Real é precisamente o troço tecnicamente mais complicado e o mais caro. Caríssimo, aliás: envolve a perfuração, através da Serra do Marão, de um enorme túnel - o maior túnel da Península Ibérica.


Como se vê, no que toca a auto-estradas, gastamos à grande e sem olhar a custos. Como se não tivéssemos onde gastar o dinheiro. E isto é muito difícil de explicar num país com tantas carências.

A febre das auto-estradas iniciou-se com a chegada de Cavaco Silva ao poder (final de 1985), que coincidiu com o início da entrada em Portugal dos fundos milionários da União Europeia, com a baixa do preço do petróleo para níveis históricos e com uma desvalorização significativa do dólar dos EUA, que permitia comprar o petróleo a preços ainda mais baixos, tudo criando a ilusão de um país rico e de um recurso (o petróleo) inesgotável e barato. Mas ainda hoje, um quarto de século depois, Portugal continua a insistir no mesmo modelo, apesar de o cenário ter piorado significativamente.

A auto-estrada é obra fácil e vistosa, que deixa o povo satisfeito e rende votos. Mas é difícil não considerar chocante toda esta despesa num país com tantos problemas. Não é só em Portugal que há auto-estradas. Mas não haverá outro país da União Europeia com tão grande contraste entre o país das luxuosas auto-estradas e o outro país, a realidade… Um país onde, como escrevia recentemente António Barreto, “quase perdemos a agricultura, a floresta e o mar, recursos naturais de alto valor, mas desperdiçados pela facilidade da vistosa obra pública”.

Por muito que isso nos desgoste, não temos capacidade económica para ter 3 200 quilómetros de auto-estradas, quando simultaneamente temos tantas carências.

Dado que os portugueses gostam muito de auto-estradas, há quem assemelhe este cenário ao do menino pobre que não consegue meter na cabeça que não pode ter uma PlayStation.

Vivemos, é verdade, numa democracia. Quem decide onde devem ser gastos os dinheiros públicos são os portugueses, através dos representantes que elegem para o parlamento nacional. Não se pode é deixar de se ser coerente com as opções que se tomam. Não é possível aplaudirmos os 3 200 quilómetros de auto-estradas e ao mesmo tempo ficarmos espantados com o endividamento do país, queixarmo-nos dos sacrifícios que nos são exigidos por causa do défice, da justiça que não funciona, da cobertura da rede de cuidados de saúde que devia ser melhor, da inexistência de uma escola perto de casa e de um sistema educativo de qualidade, dos transportes públicos que são "maus", do estado da nossa cultura, do valioso património que está a cair, da licença de maternidade que é curta e dos fracos incentivos à natalidade, etc., etc., etc. É preciso perceber que o dinheiro não cai do céu, não estica, não chega para tudo. Pensem nisso.

Joana Ortigão


Nota importante: este artigo não pretendeu, nem de perto, nem de longe, constituir uma análise de custo / benefício das auto-estradas que se construíram em Portugal. São apenas algumas reflexões e não passam disso.

A rede portuguesa de auto-estradas: motivo de orgulho? (10)

I
(continuação) (clique aqui para ver a nona parte 

Quando se fala na sobredimensionada rede nacional de auto-estradas e do facto de estarmos à frente na União Europeia neste domínio, diz-se, por vezes, que existem fatores específicos do nosso país que a permitem justificar.

Entre esses fatores, é frequentemente citado o relevo do nosso território. Mas este argumento não convence: por um lado, países como a Áustria, a Eslovénia, a França ou a Alemanha são atravessados por uma grande cadeia montanhosa (os Alpes) e todos têm, em termos relativos, menos auto-estradas do que Portugal e mais ferrovia (fora da UE, a Noruega é outro exemplo que se pode citar). Por outro lado, se apesar do relevo se consegue construir uma auto-estrada, por maioria de razão é possível construir, no mesmo local, uma boa estrada em vez dela: o argumento não faz muito sentido.

A configuração geométrica do país é outra das justificações por vezes invocada. Relativamente a este ponto, é sempre possível citar o exemplo, já aqui referido, da Noruega, que é um país com uma configuração geométrica muito mais desfavorável do que a nossa e que, no entanto, tem muitíssimo menos auto-estradas do que Portugal, embora seja o terceiro país mais rico do mundo e tenha capacidade para construir uma rede de auto-estradas muito maior do que a nossa. Outros exemplos bem mais desfavoráveis do que o português podem ser citados, como o Reino Unido, a Itália, a Dinamarca ou a Suécia: todos com muito menos auto-estradas.

O facto de o argumento não ser válido na comparação com os restantes países não significa que seja irrelevante. Se a largura de Portugal não ultrapassa os 200 quilómetros, já de Norte a Sul do país a distância máxima, em linha reta, é de cerca de 560 quilómetros, sendo que, pelas atuais estradas, se podem percorrer mais de 700 km de um extremo ao outro. Pode, por isso, aceitar-se a existência de uma auto-estrada de Norte a Sul do país. Esse percurso em auto-estrada existe, de resto: de Valença do Minho a Albufeira é possível viajar em auto-estrada, numa distância total que ronda os 630 quilómetros, o que, de resto, equivale a apenas 19,5% da nossa rede de auto-estradas (incluindo os 2731 km construídos e os 490 km em construção).

O argumento também joga, porém, no sentido inverso: a diminuta largura do nosso território continental (um máximo de cerca de 200 quilómetros) é favorável, tornando mais dificilmente justificáveis as auto-estradas no sentido Poente-Nascente. Mas já existem quatro entre estes dois extremos - e está em construção uma quinta no Norte (A4), uma sexta no Sul (IP8) e continua em cima da mesa a hipótese de uma sétima no Centro (esta atravessando a Serra da Estrela em túnel). Recorde-se que, numa distância de 200 quilómetros, o tempo que se ganha numa deslocação em auto-estrada, em relação a uma (boa) estrada reservada a veículos automóveis, é de apenas trinta minutos (portanto, estamos a falar de trinta minutos no máximo, isto é, só para quem percorre toda a extensão entre os extremos Poente e Nascente).

Por fim, o tipo de povoamento é frequentemente citado para justificar a enorme rede de auto-estradas portuguesa. Eram mais ou menos nesse sentido as palavras do atual Presidente da Estradas de Portugal com que iniciámos, há um mês, esta série de artigos: «Há uma manifesta macrocefalia de algumas localidades, e isso é fator de embaraço para a fluidez de tráfego».

Portugal tem um grande desequilíbrio demográfico entre o interior e o litoral: 75% da população do continente vive no litoral. Mas há outros países da Europa em igual ou mesmo em pior situação do que Portugal. Mais uma vez, podemos citar a Noruega, onde quase 90% da população vive no Sul do país, e que tem uma rede ínfima de auto-estradas, quando comparada com a nossa. Ou o Reino Unido, onde 90% da população vive no Sul (perto de 85% em Inglaterra e 5% no País de Gales), e que também tem uma rede de auto-estradas muito mais pequena do que a portuguesa.

A concentração de grande parte da população do continente na faixa litoral (sobretudo, entre Setúbal e Viana do Castelo) reflete-se, evidentemente, no número de deslocações (passageiros e mercadorias). Com o atual volume de tráfego no corredor Lisboa-Porto, por exemplo, uma estrada de uma só via em cada sentido em lugar da auto-estrada A1 criaria muitos constrangimentos de tráfego.

Mas, por um lado, este argumento pouco acrescenta à questão do volume mínimo de tráfego a partir do qual é justificável a construção de uma auto-estrada. Em parte anterior deste artigo, já pudemos verificar que há uma parte muito significativa da nossa rede (auto-estradas inteiras ou partes de auto-estrada) que tem um volume de tráfego perante o qual a solução da auto-estrada não se justificava.

Por outro lado, quanto às restantes auto-estradas (com maior volume de tráfego), quando falamos de uma grande procura, não podemos abstrair das suas causas. Em grande parte desses casos, não se construíram alternativas – nem rodoviárias (boas estradas), nem ferroviárias (linhas férreas modernizadas ou com capacidade para absorver toda a procura potencial).

Com a chegada, nos anos 80, dos fundos comunitários, ao mesmo tempo que se continuava uma política centralista e de desinvestimento no interior (sem criação de incentivos sérios para a fixação das populações), construíram-se auto-estradas e desinvestiu-se em grande parte da restante rede viária, bem como na ferrovia que, com a proliferação de auto-estradas, deixou, em inúmeros percursos, de poder concorrer verdadeiramente com o automóvel. Mesmo o corredor ferroviário Lisboa-Porto está saturado, tinha procura potencial para crescer e, ainda assim, preferiu-se construir uma segunda auto-estrada entre Lisboa e o Porto - e ainda se está a construir uma terceira.

A procura atual não é, pois, senão o reflexo disto tudo (e de uma política sistemática de incentivo da utilização do automóvel particular). Assim, por exemplo, se é verdade que na auto-estrada A8 (integrante da segunda ligação em auto-estrada entre Lisboa e o Porto) a procura excede os dez mil veículos/dia em grande parte da sua extensão, esse facto não pode ser dissociado, quer da má alternativa rodoviária (a N8), quer, sobretudo, da falta de modernização da Linha do Oeste - sob pena de estarmos a confundir a causa com a consequência. O argumento não é, em conclusão, muito válido. Por outras palavras, não é decisivo para se concluir que não foi um erro construir algumas destas auto-estradas que têm um tráfego acima do mínimo exigível.

O mesmo se aplica ao argumento do povoamento particularmente disperso em algumas zonas do país. Quem conheça os distritos de Aveiro, do Porto ou de Braga sabe que é normal a uma povoação se suceder logo outra e que, em resultado disso, uma estrada pode atravessar sucessivas localidades ao longo de muitos quilómetros, com importantes constrangimentos de tráfego, nomeadamente, ao nível da velocidade de circulação. Mas se uma auto-estrada serve para contornar esse problema, por maioria de razão uma estrada com o mesmo traçado também. O argumento não faz sentido.


Por seu turno, há um argumento de peso que funciona claramente a favor de muitos outros países da Europa, por comparação com Portugal: a situação geográfica de cada país. Portugal é um país periférico: está na ponta da Europa. Ao invés, muitos países da União Europeia funcionam como países de atravessamento, o que permite explicar, numa parte importante, a dimensão das suas próprias redes de auto-estrada. Os exemplos são muitos. Holanda, Bélgica, Alemanha, Áustria, Itália, Luxemburgo, França, República Checa ou Eslovénia são alguns deles. A Eslovénia – recorde-se – é o outro dos países menos ricos (além de Portugal) que se intromete entre os “grandes” em quatro das seis tabelas que mostrámos no artigo anterior [Portugal está nas seis]. Trata-se de um país dos Alpes que faz fronteira com a Itália, com a Áustria, com a Hungria e com a Croácia e está sujeito a um intenso tráfego rodoviário de atravessamento (sobretudo, entre o Ocidente - através da Itália ou da Áustria - e o Leste da Europa, e vice-versa). Não obstante a Eslovénia surgir bem classificada naquelas tabelas, a rede de auto-estradas eslovena resume-se, basicamente, a três auto-estradas que atravessam o país entre as fronteiras italiana, austríaca, croata e húngara, e que correspondem a cerca de três quartos da rede total. As restantes (muito poucas) auto-estradas servem também o tráfego de fronteira (com exceção de uma auto-estrada circular em redor da capital).

Esta especial situação de muitos países da UE é frequentemente esquecida entre nós e, no entanto, é muito relevante – não apenas no que diz respeito ao tráfego de mercadorias, mas também no que se refere ao tráfego de passageiros (incluindo as muito numerosas deslocações em turismo entre esses países).

Portugal, um país periférico com uma só fronteira terrestre (Espanha), não tem, nem de perto, nem de longe, esse problema. Aliás, o nosso país tem hoje quatro auto-estradas que servem a fronteira espanhola (A3 em Valença, A25 em Vilar Formoso, A6 em Caia e A22 em Vila Real de Santo António; está em construção uma quinta, a A4, até Quintanilha). Como se referiu numa parte anterior deste artigo, em todas elas o tráfego de fronteira é reduzido (nalguns casos, mesmo muito reduzido), sempre abaixo do valor acima do qual se torna justificável a construção de uma auto-estrada.

(continua)

A rede portuguesa de auto-estradas: motivo de orgulho? (9)

I
(continuação) (clique aqui para ver a oitava parte)

No artigo anterior, comparou-se a rede nacional de auto-estradas com a dos restantes países da União Europeia, quer em termos absolutos, quer em termos relativos. Foi possível verificar que, em qualquer caso, Portugal está sempre nos primeiros lugares entre os países da UE. Mas também pudemos constatar que não estamos sozinhos: há alguns (poucos) países com valores próximos dos nossos ou até superiores. Todos mais ricos do que Portugal, diga-se.

Há, no entanto, uma diferença muito importante entre a situação portuguesa e a desses outros países, que agrava significativamente a nossa posição: a situação da nossa rede ferroviária.

É a seguinte a ordenação os países da União Europeia de acordo com o índice rede de auto-estradas / rede ferroviária:
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A tabela indica o número de metros de auto-estrada por quilómetro de ferrovia (2008): assim, por exemplo, a Alemanha tem 335 metros de auto-estrada por cada quilómetro de linha férrea.

* A ilha do Chipre, que tem 257 quilómetros de auto-estrada, não tem linhas férreas. Torna-se, pois, impossível apresentar um índice.
** Malta, uma ilha mais pequena do que a Terceira (Açores), não tem auto-estradas, nem ferrovia.
*** A Letónia não tem auto-estradas. Mas tem 2 263 km de ferrovia. Está, pois, no extremo oposto ao do Chipre e lideraria, portanto, esta tabela se tivéssemos ordenado os 27 países da União pelo índice inverso - número de quilómetros de ferrovia / quilómetros de auto-estrada.


Não será ilegítimo considerar o Chipre um caso à parte, pelo facto de se tratar de uma ilha. Portugal estaria, portanto, no topo desta lista, sendo apenas ultrapassado pela Espanha.

Mas se isto já nos devia envergonhar, a verdade é que temos razões para nos envergonharmos ainda mais.

Um facto impressionante é que, excetuando os casos de Espanha e da Holanda, a diferença entre Portugal e os restantes países é muito acentuada. A Bélgica surge logo em 6.º lugar nesta tabela, mas enquanto que em Portugal a rede de auto-estradas é praticamente tão extensa como a rede ferroviária (948 m de auto-estrada por cada 1000 m de ferrovia), na Bélgica a rede ferroviária duplica a extensão da rede de auto-estradas! O valor de Portugal quase triplica o de países como a Dinamarca, a França ou a Alemanha, praticamente quadruplica o do Reino Unido e do Luxemburgo, é quase seis vezes superior ao da Suécia e sete vezes e meia o da Finlândia.

Por outro lado, nem a posição da Espanha nos pode atenuar um pouco a vergonha.

É que estes dados são relativos a 2008 (pelas razões explicadas no artigo anterior). De então para cá:

- Portugal continuou a inaugurar auto-estradas e, como se sabe, está a construir mais centenas de quilómetros de auto-estrada;

- no nosso país foram inaugurados 9 (nove) quilómetros de ferrovia (Ramal do Porto de Aveiro) [foi também inaugurada uma variante de 3,5 km, mas em substituição de um troço de 4 km];

- foi encerrada a Linha da Lousã (35 km) e foram ainda encerradas (definitivamente?) várias outras linhas férreas - Tua (troço de 42 km), Corgo (25 km), Tâmega (13 km) e Ramal da Figueira da Foz (50 km) estão, pelo menos, sem utilização (sendo que os dados do Eurostat se referem precisamente apenas às linhas em funcionamento).

Enquanto isto, a Espanha inaugurou duas ou três dezenas de quilómetros de auto-estrada e centenas de quilómetros de linhas férreas, e está presentemente a construir quase dois mil quilómetros de ferrovia. Ou seja, se a Espanha aparece, nesta tabela de 2008, como tendo uma rede de auto-estradas tão extensa como a rede ferroviária, a realidade atual já é bem diferente.

Em suma, e sempre excecionando o caso particular do Chipre, Portugal é hoje o único país da União Europeia com mais quilómetros de auto-estrada do que de linhas férreas – e com tendência para essa diferença se acentuar de modo significativo, face às centenas de quilómetros de auto-estrada em construção e à continuação do desinvestimento na ferrovia (pairando sobre várias outras linhas a ameaça de encerramento).

Como se isto não bastasse, enquanto a Espanha ou a Holanda (os únicos países com valores próximos de Portugal) têm uma verdadeira rede ferroviária digna desse nome, Portugal não tem. E, por outro lado, grande parte da nossa "rede" ferroviária continua sem ser modernizada: Linha do Minho, Linha do Oeste e Linha do Algarve são apenas três exemplos de linhas seriamente carecidas (parcial ou totalmente) de modernização. 
Por outras palavras, enquanto em Espanha o comboio consegue competir com a auto-estrada, em Portugal isso sucede apenas com pouquíssimas linhas (basicamente, Linha do Norte e Linha do Sul). O que vai explicando a situação quase dramática de grande parte da nossa ferrovia.

Tudo isto resultou de uma opção estratégica pela qual se encarou a rede de auto-estradas como prioritária e a ferrovia como meramente secundária. Não por acaso, coincidente com o início da febre das auto-estradas, no final dos anos 80 (sendo então primeiro-ministro Cavaco Silva), foi a opção de encerrar uma parte bastante significativa da nossa “rede” ferroviária [a tristemente célebre “razia de Cavaco”], sem qualquer preocupação de a renovar ou substituir.

Essa opção revela-se claramente na distribuição dos fundos milionários da União Europeia de que Portugal beneficiou no último quarto de século.

Se atentarmos, por exemplo, no quadro do Fundo de Coesão I, referente ao período de 1993-1999 (ainda o único com relatório publicado), foi a seguinte a distribuição dos fundos comunitários na área dos transportes:
- Portos: 7%
- Aeroportos: 12%
- Ferrovia: 19%
- Rodovia: 62%  (auto-estradas A1, A2, A3, A4, A6, A9, A21/Ponte Vasco da Gama, A36/CRIL…)

O grosso destes parcos fundos comunitários destinados à ferrovia foi aplicado na modernização da Linha do Norte: 83,1%. Os restantes 16,9% destinaram-se à Linha da Beira Alta. E mais nada.

Claro que isto não constitui surpresa, mas nunca é demais realçar esta oportunidade única irremediavelmente perdida; de um país que não é rico e que apostou de forma claramente predominante nas auto-estradas, no que constituiu mais um reflexo do novo-riquismo em que, infelizmente, nos tornámos tão férteis desde que os milhões da União Europeia começaram a chegar. Em Portugal investiu-se abundantemente na mentalidade de que o comboio é para os pobres coitados que não têm a possibilidade de usar o automóvel. A “mobilidade sustentável” é um conceito que tem custado muito a penetrar nas nossas atrasadas mentalidades, embora por vezes esteja muito presente ao nível do discurso.

Não podemos impor o modo ferroviário como forma exclusiva de deslocação dos portugueses. A existência de uma boa rede viária principal é importante e não pode, evidentemente, ser subestimada ou desprezada. Mas através do investimento feito nas auto-estradas, o que fizemos e estamos a fazer na maior parte do país é justamente o inverso: estamos a impor o modo rodoviário como forma de deslocação por excelência dos portugueses, deixando as populações sem alternativa.

A inexistência de uma alternativa não rodoviária vai, aliás, tornar-se um problema bem bicudo de resolver quando o preço do petróleo começar a subir. Se se pode dizer que Portugal está neste momento a fazer uma aposta na introdução dos automóveis elétricos, não é menos verdade que estamos ainda muitíssimo longe de saber se desta vez o carro eléctrico vai mesmo vingar - e mesmo que vingue, isso só irá acontecer daqui a muitos anos: as expectativas mais otimistas apontam para duas a quatro décadas (mesmo o muito ambicioso - e irrealista? - plano português aponta para apenas 10% do parque automóvel daqui a 10 anos: sobrarão 90% de veículos...). Certo, certo é mesmo o aumento brutal do preço do petróleo e que ele vai ocorrer seguramente muito antes de o atual parque automóvel ter sido substituído (?) pelos automóveis pseudo-verdes.

Os outros países da Europa não se desfizeram das suas redes ferroviárias – pelo contrário, não deixaram de apostar nelas. Nós preferimos meter-nos num trapézio sem rede. Fomos muito pouco inteligentes e agimos sem visão de futuro.
  

Entre 1986 e 2008, a rede de auto-estradas cresceu mais de 1600%. A rede ferroviária diminuiu 21%.

Um pouco por todo o país, foram sendo construídas auto-estradas nos corredores atravessados por linhas férreas, num processo de contínua “substituição” da ferrovia pela auto-estrada. Alguns exemplos:

- entre a Régua, Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Vidago e Chaves, onde o comboio já não apita, a auto-estrada A24 segue o corredor da Linha do Corgo encerrada por Cavaco Silva;

- entre Mirandela, Macedo de Cavaleiros e Bragança, onde o comboio já não passa, a auto-estrada A4 (neste momento em construção) segue o corredor da Linha do Tua encerrada por Cavaco Silva;

- entre Aveiro, Vouzela / Oliveira de Frades / São Pedro do Sul e Viseu, onde o comboio da Linha do Vale do Vouga deixou de apitar, impõe-se agora, sem concorrência, a auto-estrada A25;

- entre a Pampilhosa, Cantanhede e a Figueira da Foz, onde o comboio também já não passa (Ramal da Figueira da Foz), passa agora a A14;

- entre a Figueira da Foz, Leiria, Caldas da Rainha, Torres Vedras e Lisboa, onde continua em processo de morte lenta uma das maiores linhas férreas portuguesas (a Linha do Oeste), passam agora as auto-estradas A17 e A8, em concorrência à auto-estrada A1;

- entre Évora, Evoramonte, Estremoz e Borba, a auto-estrada A6 segue o caminho da desativada Linha de Évora;

- entre as cidades de Lagos, Portimão, Lagoa, Albufeira, Loulé, Faro, Tavira e Vila Real de Santo António, a muito carecida de modernização Linha do Algarve vê agora os automóveis passar rapidamente na auto-estrada A22.

Nem é necessário ir buscar lá fora os bons exemplos de uma ferrovia cada vez mais bem sucedida (em prejuízo do poluente automóvel), para se concluir como tudo poderia (e deveria) ter sido diferente nesta nossa terrinha: o exemplo da Linha do Norte permite perceber melhor porque é que devemos falar de grande oportunidade perdida e de erro histórico.

Como se sabe, a Linha do Norte beneficiou de um grande investimento de modernização (não concluído) e é hoje a menina dos olhos de ouro da CP: é o serviço ferroviário de melhor qualidade existente no nosso país (e até dá lucro). No corredor Lisboa – Porto, a Linha do Norte concorre hoje verdadeiramente com a auto-estrada. E se, pela lógica das coisas, a auto-estrada faz mais sentido nas médias e longas distâncias, no corredor Lisboa – Porto é precisamente nessas distâncias que os portugueses trocam mais facilmente a auto-estrada pelo comboio!

Assim, nas deslocações de média e longa distância no corredor Lisboa-Porto, a quota do automóvel era, em 2003, de 78% e a do comboio 12%. Nas deslocações curtas, a quota do automóvel subia para 93% e a do comboio descia para apenas 3%.

Dados mais recentes (2009) mostram que, no percurso Porto-Lisboa ou Lisboa-Porto, o número de passageiros do comboio tem aumentado continuamente, ganhando mercado ao automóvel e ao autocarro (nesse percurso, o comboio tem, aliás, desde há vários anos, a maior parte da fatia de mercado dos transportes públicos): se a quota de mercado do comboio é quase insignificante nas viagens entre as estações intermédias (quem vai de Santarém a Coimbra ou de Espinho a Coimbra usa a auto-estrada), no percurso entre Lisboa e o Porto a quota do modo ferroviário andará atualmente perto dos 20% e só não é mais alta porque a Linha do Norte está saturada, não havendo capacidade para um aumento da frequência de comboios (nem frota): os comboios rápidos têm de conviver na mesma linha com os suburbanos, com os regionais, com os Inter-regionais e com os comboios de mercadorias.

Apesar destes sinais claros de que entre Lisboa e o Porto a quota do comboio podia subir significativamente e da necessidade imperiosa de se apostar numa mobilidade mais sustentável, preferiu-se construir uma segunda auto-estrada Lisboa - Porto (A8 + A17 + A29), em lugar de, por exemplo, se investir em frota e construir outra linha férrea. Incompreensível.

E o que se diz da Linha do Norte diz-se de outras zonas do país onde se preferiu construir auto-estradas a construir, com o mesmo dinheiro, boas estradas e ferrovia ou apenas ferrovia (nos casos em que as estradas existentes eram suficientes, ainda que mediante requalificação e/ou correção de traçados).

Portugal não é um país rico. Não podíamos, pois, fazer em todo o país um investimento idêntico àquele que foi feito na Linha do Norte e construir ainda uma rede de auto-estradas com a dimensão atual. Havia, pois, que gerir os recursos disponíveis, repartindo-os pela ferrovia e pela rodovia (sempre com a preocupação fundamental de incentivar a primeira e nunca a segunda), à medida das nossas capacidades. Em vez disso, o nosso país praticamente limitou-se a construir auto-estradas, acima das nossas capacidades.  

De facto, não temos grandes motivos para nos orgulharmos da rede de auto-estradas que construímos. Pelo contrário: temos razões para ter vergonha. Continuamos, contra a corrente atual, a incentivar o uso do automóvel e a apostar numa mobilidade cada vez mais insustentável. A caminho do abismo?

Joana Ortigão