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(continuação) (clique aqui para ver a
oitava parte)
No artigo anterior, comparou-se a rede nacional de auto-estradas com a dos restantes países da União Europeia, quer em termos absolutos, quer em termos relativos. Foi possível verificar que, em qualquer caso, Portugal está sempre nos primeiros lugares entre os países da UE. Mas também pudemos constatar que não estamos sozinhos: há alguns (poucos) países com valores próximos dos nossos ou até superiores. Todos mais ricos do que Portugal, diga-se.
Há, no entanto, uma diferença muito importante entre a situação portuguesa e a desses outros países, que agrava significativamente a nossa posição:
a situação da nossa rede ferroviária.
É a seguinte a ordenação os países da União Europeia de acordo com o índice
rede de auto-estradas / rede ferroviária:
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A tabela indica o número de metros de auto-estrada por quilómetro de ferrovia (2008): assim, por exemplo, a Alemanha tem 335 metros de auto-estrada por cada quilómetro de linha férrea.
* A ilha do Chipre, que tem 257 quilómetros de auto-estrada, não tem linhas férreas. Torna-se, pois, impossível apresentar um índice.
** Malta, uma ilha mais pequena do que a Terceira (Açores), não tem auto-estradas, nem ferrovia.
*** A Letónia não tem auto-estradas. Mas tem 2 263 km de ferrovia. Está, pois, no extremo oposto ao do Chipre e lideraria, portanto, esta tabela se tivéssemos ordenado os 27 países da União pelo índice inverso - número de quilómetros de ferrovia / quilómetros de auto-estrada.
Não será ilegítimo considerar o Chipre um caso à parte, pelo facto de se tratar de uma ilha. Portugal estaria, portanto, no topo desta lista, sendo apenas ultrapassado pela Espanha.
Mas se isto já nos devia envergonhar, a verdade é que temos razões para nos envergonharmos ainda mais.
Um facto impressionante é que, excetuando os casos de Espanha e da Holanda, a diferença entre Portugal e os restantes países é muito acentuada. A Bélgica surge logo em 6.º lugar nesta tabela, mas enquanto que em Portugal a rede de auto-estradas é praticamente tão extensa como a rede ferroviária (948 m de auto-estrada por cada 1000 m de ferrovia), na Bélgica a rede ferroviária duplica a extensão da rede de auto-estradas! O valor de Portugal quase triplica o de países como a Dinamarca, a França ou a Alemanha, praticamente quadruplica o do Reino Unido e do Luxemburgo, é quase seis vezes superior ao da Suécia e sete vezes e meia o da Finlândia.
Por outro lado, nem a posição da Espanha nos pode atenuar um pouco a vergonha.
É que estes dados são relativos a 2008 (pelas razões explicadas no artigo anterior). De então para cá:
- Portugal continuou a inaugurar auto-estradas e, como se sabe, está a construir mais centenas de quilómetros de auto-estrada;
- no nosso país foram inaugurados 9 (nove) quilómetros de ferrovia (Ramal do Porto de Aveiro) [foi também inaugurada uma variante de 3,5 km, mas em substituição de um troço de 4 km];
- foi encerrada a Linha da Lousã (35 km) e foram ainda encerradas (definitivamente?) várias outras linhas férreas - Tua (troço de 42 km), Corgo (25 km), Tâmega (13 km) e Ramal da Figueira da Foz (50 km) estão, pelo menos, sem utilização (sendo que os dados do Eurostat se referem precisamente apenas às linhas em funcionamento).
Enquanto isto, a Espanha inaugurou duas ou três dezenas de quilómetros de auto-estrada e centenas de quilómetros de linhas férreas, e está presentemente a construir quase dois mil quilómetros de ferrovia. Ou seja, se a Espanha aparece, nesta tabela de 2008, como tendo uma rede de auto-estradas tão extensa como a rede ferroviária, a realidade atual já é bem diferente.
Em suma, e sempre excecionando o caso particular do Chipre, Portugal é hoje o único país da União Europeia com mais quilómetros de auto-estrada do que de linhas férreas – e com tendência para essa diferença se acentuar de modo significativo, face às centenas de quilómetros de auto-estrada em construção e à continuação do desinvestimento na ferrovia (pairando sobre várias outras linhas a ameaça de encerramento).
Como se isto não bastasse,
enquanto a Espanha ou a Holanda (os únicos países com valores próximos de Portugal)
têm uma verdadeira rede ferroviária digna desse nome, Portugal não tem. E, por outro lado, grande parte da nossa "rede" ferroviária continua sem ser modernizada: Linha do Minho, Linha do Oeste e Linha do Algarve são apenas três exemplos de linhas seriamente carecidas (parcial ou totalmente) de modernização.
Por outras palavras, enquanto em Espanha o comboio consegue competir com a auto-estrada, em Portugal isso sucede apenas com pouquíssimas linhas (basicamente, Linha do Norte e Linha do Sul). O que vai explicando a situação quase dramática de grande parte da nossa ferrovia.
Tudo isto resultou de uma opção estratégica pela qual se encarou a rede de auto-estradas como prioritária e a ferrovia como meramente secundária. Não por acaso, coincidente com o início da febre das auto-estradas, no final dos anos 80 (sendo então primeiro-ministro Cavaco Silva), foi a opção de encerrar uma parte bastante significativa da nossa “rede” ferroviária [a tristemente célebre “razia de Cavaco”], sem qualquer preocupação de a renovar ou substituir.
Essa opção revela-se claramente na distribuição dos fundos milionários da União Europeia de que Portugal beneficiou no último quarto de século.
Se atentarmos, por exemplo, no quadro do Fundo de Coesão I, referente ao período de 1993-1999 (ainda o único com relatório publicado), foi a seguinte a distribuição dos fundos comunitários na área dos transportes:
- Portos: 7%
- Aeroportos: 12%
- Ferrovia: 19%
- Rodovia: 62% (auto-estradas A1, A2, A3, A4, A6, A9, A21/Ponte Vasco da Gama, A36/CRIL…)
O grosso destes parcos fundos comunitários destinados à ferrovia foi aplicado na modernização da Linha do Norte: 83,1%. Os restantes 16,9% destinaram-se à Linha da Beira Alta. E mais nada.
Claro que isto não constitui surpresa, mas nunca é demais realçar esta oportunidade única irremediavelmente perdida; de um país que não é rico e que apostou de forma claramente predominante nas auto-estradas, no que constituiu mais um reflexo do novo-riquismo em que, infelizmente, nos tornámos tão férteis desde que os milhões da União Europeia começaram a chegar. Em Portugal investiu-se abundantemente na mentalidade de que o comboio é para os pobres coitados que não têm a possibilidade de usar o automóvel. A “mobilidade sustentável” é um conceito que tem custado muito a penetrar nas nossas atrasadas mentalidades, embora por vezes esteja muito presente ao nível do discurso.
Não podemos impor o modo ferroviário como forma exclusiva de deslocação dos portugueses. A existência de uma boa rede viária principal é importante e não pode, evidentemente, ser subestimada ou desprezada. Mas através do investimento feito nas auto-estradas, o que fizemos e estamos a fazer na maior parte do país é justamente o inverso: estamos a impor o modo rodoviário como forma de deslocação por excelência dos portugueses, deixando as populações sem alternativa.
A
inexistência de uma alternativa não rodoviária vai, aliás, tornar-se um problema bem bicudo de resolver quando o preço do petróleo começar a subir. Se se pode dizer que Portugal está neste momento a fazer uma aposta na introdução dos
automóveis elétricos, não é menos verdade que estamos ainda
muitíssimo longe de saber se desta vez o carro eléctrico vai mesmo vingar - e mesmo que vingue, isso só irá acontecer daqui a muitos anos: as expectativas mais otimistas apontam para duas a quatro décadas (mesmo o
muito ambicioso - e irrealista? - plano português aponta para apenas
10% do parque automóvel daqui a
10 anos: sobrarão
90% de veículos...). Certo, certo é mesmo o aumento brutal do preço do petróleo e que ele vai ocorrer seguramente muito antes de o atual parque automóvel ter sido substituído (?) pelos automóveis
pseudo-verdes.
Os outros países da Europa não se desfizeram das suas redes ferroviárias – pelo contrário, não deixaram de apostar nelas. Nós preferimos meter-nos num trapézio sem rede. Fomos muito pouco inteligentes e agimos sem visão de futuro.
Entre 1986 e 2008, a rede de auto-estradas cresceu mais de 1600%. A rede ferroviária diminuiu 21%.
Um pouco por todo o país, foram sendo construídas auto-estradas nos corredores atravessados por linhas férreas, num processo de contínua “substituição” da ferrovia pela auto-estrada. Alguns exemplos:
- entre a Régua, Vila Real, Vila Pouca de Aguiar, Vidago e Chaves, onde o comboio já não apita, a auto-estrada A24 segue o corredor da Linha do Corgo encerrada por Cavaco Silva;
- entre Mirandela, Macedo de Cavaleiros e Bragança, onde o comboio já não passa, a auto-estrada A4 (neste momento em construção) segue o corredor da Linha do Tua encerrada por Cavaco Silva;
- entre Aveiro, Vouzela / Oliveira de Frades / São Pedro do Sul e Viseu, onde o comboio da Linha do Vale do Vouga deixou de apitar, impõe-se agora, sem concorrência, a auto-estrada A25;
- entre a Pampilhosa, Cantanhede e a Figueira da Foz, onde o comboio também já não passa (Ramal da Figueira da Foz), passa agora a A14;
- entre a Figueira da Foz, Leiria, Caldas da Rainha, Torres Vedras e Lisboa, onde continua em processo de morte lenta uma das maiores linhas férreas portuguesas (a Linha do Oeste), passam agora as auto-estradas A17 e A8, em concorrência à auto-estrada A1;
- entre Évora, Evoramonte, Estremoz e Borba, a auto-estrada A6 segue o caminho da desativada Linha de Évora;
- entre as cidades de Lagos, Portimão, Lagoa, Albufeira, Loulé, Faro, Tavira e Vila Real de Santo António, a muito carecida de modernização Linha do Algarve vê agora os automóveis passar rapidamente na auto-estrada A22.
Nem é necessário ir buscar lá fora os bons exemplos de uma ferrovia cada vez mais bem sucedida (em prejuízo do poluente automóvel), para se concluir como tudo poderia (e deveria) ter sido diferente nesta nossa terrinha: o exemplo da Linha do Norte permite perceber melhor porque é que devemos falar de grande oportunidade perdida e de erro histórico.
Como se sabe, a Linha do Norte beneficiou de um grande investimento de modernização (não concluído) e é hoje a menina dos olhos de ouro da CP: é o serviço ferroviário de melhor qualidade existente no nosso país (e até dá lucro). No corredor Lisboa – Porto, a Linha do Norte concorre hoje verdadeiramente com a auto-estrada. E se, pela lógica das coisas, a auto-estrada faz mais sentido nas médias e longas distâncias, no corredor Lisboa – Porto é precisamente nessas distâncias que os portugueses trocam mais facilmente a auto-estrada pelo comboio!
Assim, nas deslocações de média e longa distância no corredor Lisboa-Porto, a quota do automóvel era, em 2003, de 78% e a do comboio 12%. Nas deslocações curtas, a quota do automóvel subia para 93% e a do comboio descia para apenas 3%.
Dados mais recentes (
2009) mostram que,
no percurso Porto-Lisboa ou Lisboa-Porto, o número de passageiros do comboio tem aumentado continuamente, ganhando mercado ao automóvel e ao autocarro (nesse percurso, o comboio tem, aliás, desde há vários anos, a maior parte da fatia de mercado dos transportes públicos): se a quota de mercado do comboio é quase insignificante nas viagens entre as estações intermédias (quem vai de Santarém a Coimbra ou de Espinho a Coimbra usa a auto-estrada), no percurso entre Lisboa e o Porto
a quota do modo ferroviário andará atualmente perto dos 20% e
só não é mais alta porque a Linha do Norte está saturada, não havendo capacidade para um aumento da frequência de comboios (nem frota): os comboios rápidos têm de conviver na mesma linha com os suburbanos, com os regionais, com os Inter-regionais e com os comboios de mercadorias
.
Apesar destes sinais claros de que entre Lisboa e o Porto a quota do comboio podia subir significativamente e da necessidade imperiosa de se apostar numa mobilidade mais sustentável, preferiu-se construir uma segunda auto-estrada Lisboa - Porto (A8 + A17 + A29), em lugar de, por exemplo, se investir em frota e construir outra linha férrea. Incompreensível.
E o que se diz da Linha do Norte diz-se de outras zonas do país onde se preferiu construir auto-estradas a construir, com o mesmo dinheiro, boas estradas e ferrovia ou apenas ferrovia (nos casos em que as estradas existentes eram suficientes, ainda que mediante requalificação e/ou correção de traçados).
Portugal não é um país rico. Não podíamos, pois, fazer em todo o país um investimento idêntico àquele que foi feito na Linha do Norte e construir ainda uma rede de auto-estradas com a dimensão atual. Havia, pois, que gerir os recursos disponíveis, repartindo-os pela ferrovia e pela rodovia (sempre com a preocupação fundamental de incentivar a primeira e nunca a segunda), à medida das nossas capacidades. Em vez disso, o nosso país praticamente limitou-se a construir auto-estradas, acima das nossas capacidades.
De facto, não temos grandes motivos para nos orgulharmos da rede de auto-estradas que construímos. Pelo contrário: temos razões para ter vergonha. Continuamos, contra a corrente atual, a incentivar o uso do automóvel e a apostar numa mobilidade cada vez mais insustentável. A caminho do abismo?
Joana Ortigão