(continuação) (clique aqui para ver a nona parte)
Entre esses fatores, é frequentemente citado o relevo do nosso território. Mas este argumento não convence: por um lado, países como a Áustria, a Eslovénia, a França ou a Alemanha são atravessados por uma grande cadeia montanhosa (os Alpes) e todos têm, em termos relativos, menos auto-estradas do que Portugal e mais ferrovia (fora da UE, a Noruega é outro exemplo que se pode citar). Por outro lado, se apesar do relevo se consegue construir uma auto-estrada, por maioria de razão é possível construir, no mesmo local, uma boa estrada em vez dela: o argumento não faz muito sentido.
A configuração geométrica do país é outra das justificações por vezes invocada. Relativamente a este ponto, é sempre possível citar o exemplo, já aqui referido, da Noruega, que é um país com uma configuração geométrica muito mais desfavorável do que a nossa e que, no entanto, tem muitíssimo menos auto-estradas do que Portugal, embora seja o terceiro país mais rico do mundo e tenha capacidade para construir uma rede de auto-estradas muito maior do que a nossa. Outros exemplos bem mais desfavoráveis do que o português podem ser citados, como o Reino Unido, a Itália, a Dinamarca ou a Suécia: todos com muito menos auto-estradas.
O facto de o argumento não ser válido na comparação com os restantes países não significa que seja irrelevante. Se a largura de Portugal não ultrapassa os 200 quilómetros, já de Norte a Sul do país a distância máxima, em linha reta, é de cerca de 560 quilómetros, sendo que, pelas atuais estradas, se podem percorrer mais de 700 km de um extremo ao outro. Pode, por isso, aceitar-se a existência de uma auto-estrada de Norte a Sul do país. Esse percurso em auto-estrada existe, de resto: de Valença do Minho a Albufeira é possível viajar em auto-estrada, numa distância total que ronda os 630 quilómetros, o que, de resto, equivale a apenas 19,5% da nossa rede de auto-estradas (incluindo os 2731 km construídos e os 490 km em construção).
O argumento também joga, porém, no sentido inverso: a diminuta largura do nosso território continental (um máximo de cerca de 200 quilómetros) é favorável, tornando mais dificilmente justificáveis as auto-estradas no sentido Poente-Nascente. Mas já existem quatro entre estes dois extremos - e está em construção uma quinta no Norte (A4), uma sexta no Sul (IP8) e continua em cima da mesa a hipótese de uma sétima no Centro (esta atravessando a Serra da Estrela em túnel). Recorde-se que, numa distância de 200 quilómetros, o tempo que se ganha numa deslocação em auto-estrada, em relação a uma (boa) estrada reservada a veículos automóveis, é de apenas trinta minutos (portanto, estamos a falar de trinta minutos no máximo, isto é, só para quem percorre toda a extensão entre os extremos Poente e Nascente).
Por fim, o tipo de povoamento é frequentemente citado para justificar a enorme rede de auto-estradas portuguesa. Eram mais ou menos nesse sentido as palavras do atual Presidente da Estradas de Portugal com que iniciámos, há um mês, esta série de artigos: «Há uma manifesta macrocefalia de algumas localidades, e isso é fator de embaraço para a fluidez de tráfego».
Portugal tem um grande desequilíbrio demográfico entre o interior e o litoral: 75% da população do continente vive no litoral. Mas há outros países da Europa em igual ou mesmo em pior situação do que Portugal. Mais uma vez, podemos citar a Noruega, onde quase 90% da população vive no Sul do país, e que tem uma rede ínfima de auto-estradas, quando comparada com a nossa. Ou o Reino Unido, onde 90% da população vive no Sul (perto de 85% em Inglaterra e 5% no País de Gales), e que também tem uma rede de auto-estradas muito mais pequena do que a portuguesa.
A concentração de grande parte da população do continente na faixa litoral (sobretudo, entre Setúbal e Viana do Castelo) reflete-se, evidentemente, no número de deslocações (passageiros e mercadorias). Com o atual volume de tráfego no corredor Lisboa-Porto, por exemplo, uma estrada de uma só via em cada sentido em lugar da auto-estrada A1 criaria muitos constrangimentos de tráfego.
Mas, por um lado, este argumento pouco acrescenta à questão do volume mínimo de tráfego a partir do qual é justificável a construção de uma auto-estrada. Em parte anterior deste artigo, já pudemos verificar que há uma parte muito significativa da nossa rede (auto-estradas inteiras ou partes de auto-estrada) que tem um volume de tráfego perante o qual a solução da auto-estrada não se justificava.
Por outro lado, quanto às restantes auto-estradas (com maior volume de tráfego), quando falamos de uma grande procura, não podemos abstrair das suas causas. Em grande parte desses casos, não se construíram alternativas – nem rodoviárias (boas estradas), nem ferroviárias (linhas férreas modernizadas ou com capacidade para absorver toda a procura potencial).
Com a chegada, nos anos 80, dos fundos comunitários, ao mesmo tempo que se continuava uma política centralista e de desinvestimento no interior (sem criação de incentivos sérios para a fixação das populações), construíram-se auto-estradas e desinvestiu-se em grande parte da restante rede viária, bem como na ferrovia que, com a proliferação de auto-estradas, deixou, em inúmeros percursos, de poder concorrer verdadeiramente com o automóvel. Mesmo o corredor ferroviário Lisboa-Porto está saturado, tinha procura potencial para crescer e, ainda assim, preferiu-se construir uma segunda auto-estrada entre Lisboa e o Porto - e ainda se está a construir uma terceira.
A procura atual não é, pois, senão o reflexo disto tudo (e de uma política sistemática de incentivo da utilização do automóvel particular). Assim, por exemplo, se é verdade que na auto-estrada A8 (integrante da segunda ligação em auto-estrada entre Lisboa e o Porto) a procura excede os dez mil veículos/dia em grande parte da sua extensão, esse facto não pode ser dissociado, quer da má alternativa rodoviária (a N8), quer, sobretudo, da falta de modernização da Linha do Oeste - sob pena de estarmos a confundir a causa com a consequência. O argumento não é, em conclusão, muito válido. Por outras palavras, não é decisivo para se concluir que não foi um erro construir algumas destas auto-estradas que têm um tráfego acima do mínimo exigível.
O mesmo se aplica ao argumento do povoamento particularmente disperso em algumas zonas do país. Quem conheça os distritos de Aveiro, do Porto ou de Braga sabe que é normal a uma povoação se suceder logo outra e que, em resultado disso, uma estrada pode atravessar sucessivas localidades ao longo de muitos quilómetros, com importantes constrangimentos de tráfego, nomeadamente, ao nível da velocidade de circulação. Mas se uma auto-estrada serve para contornar esse problema, por maioria de razão uma estrada com o mesmo traçado também. O argumento não faz sentido.
Por seu turno, há um argumento de peso que funciona claramente a favor de muitos outros países da Europa, por comparação com Portugal: a situação geográfica de cada país. Portugal é um país periférico: está na ponta da Europa. Ao invés, muitos países da União Europeia funcionam como países de atravessamento, o que permite explicar, numa parte importante, a dimensão das suas próprias redes de auto-estrada. Os exemplos são muitos. Holanda, Bélgica, Alemanha, Áustria, Itália, Luxemburgo, França, República Checa ou Eslovénia são alguns deles. A Eslovénia – recorde-se – é o outro dos países menos ricos (além de Portugal) que se intromete entre os “grandes” em quatro das seis tabelas que mostrámos no artigo anterior [Portugal está nas seis]. Trata-se de um país dos Alpes que faz fronteira com a Itália, com a Áustria, com a Hungria e com a Croácia e está sujeito a um intenso tráfego rodoviário de atravessamento (sobretudo, entre o Ocidente - através da Itália ou da Áustria - e o Leste da Europa, e vice-versa). Não obstante a Eslovénia surgir bem classificada naquelas tabelas, a rede de auto-estradas eslovena resume-se, basicamente, a três auto-estradas que atravessam o país entre as fronteiras italiana, austríaca, croata e húngara, e que correspondem a cerca de três quartos da rede total. As restantes (muito poucas) auto-estradas servem também o tráfego de fronteira (com exceção de uma auto-estrada circular em redor da capital).
Esta especial situação de muitos países da UE é frequentemente esquecida entre nós e, no entanto, é muito relevante – não apenas no que diz respeito ao tráfego de mercadorias, mas também no que se refere ao tráfego de passageiros (incluindo as muito numerosas deslocações em turismo entre esses países).
Portugal, um país periférico com uma só fronteira terrestre (Espanha), não tem, nem de perto, nem de longe, esse problema. Aliás, o nosso país tem hoje quatro auto-estradas que servem a fronteira espanhola (A3 em Valença, A25 em Vilar Formoso, A6 em Caia e A22 em Vila Real de Santo António; está em construção uma quinta, a A4, até Quintanilha). Como se referiu numa parte anterior deste artigo, em todas elas o tráfego de fronteira é reduzido (nalguns casos, mesmo muito reduzido), sempre abaixo do valor acima do qual se torna justificável a construção de uma auto-estrada.
(continua)
3 comentários:
Mesmo assim eu acho que Portugal tem de ter mais AE por causa do relevo geográfico.
" Mesmo assim eu acho que Portugal tem de ter mais AE por causa do relevo geográfico.
"
Caso típico de: o que é que tem o cú a ver com as calças?
Excelente análise! Concordo em tudo.
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