Economia paralela: a melhor arma está nas nossas mãos

I
Uma notícia microscópica, que terá passado despercebida a muita gente, publicada em vários jornais no final do mês de Maio de 2010, revelava que, de acordo com o estudo mais recente, a economia paralela tem crescido em Portugal nas últimas três décadas. O país praticamente passou ao lado da notícia e a vida nacional (a oficial e a paralela) prosseguiu.

A economia paralela é um dos mais negros retratos de Portugal. Está em grande parte nas nossas mãos - nas minhas, nas suas - combatê-la. Mas, infelizmente, não há muita gente verdadeiramente empenhada em fazê-lo – umas vezes por desleixo ou desinteresse (incompreensível, como vamos tentar explicar), outras simplesmente porque o interesse individual acaba por prevalecer sobre o interesse geral.


A predisposição portuguesa para a fraude (?)

Imagine a Torre dos Clérigos, no Porto, com os seus 75 metros de altura. Continue a imaginar: chegue-se junto à torre e coloque, no chão, uma nota de 100 euros. Seria um disparate comparar a altura da torre com a da nota deitada no chão, não é? Coloque outra nota de 100 euros por cima daquela. E outra. E mais outra. Vá empilhando notas de 100 euros até a pilha atingir a altura da torre. Em 2007, o académico alemão Friedrich Schneider estimou que o valor da economia paralela em Portugal corresponderia a uma pilha de notas de 100 euros praticamente da altura da Torre dos Clérigos - o valor que parte dos portugueses subtraem anualmente aos restantes. Não é fácil percebermos a verdadeira dimensão destes números mas, para podermos ter uma ideia, há poucos anos estimou-se que se a economia paralela pagasse impostos, seria o suficiente para Portugal deixar de ter défice orçamental. Sim, esse défice que tanto nos tem atormentado... 

Mas os últimos números mostram que, afinal, a altura da Torre dos Clérigos é insuficiente…

Em Outubro de 2009, noticiava-se, em Espanha, que, de acordo com estimativas do mesmo académico, Espanha, Itália e Grécia eram os países da OCDE “recordistas” da economia subterrânea, com Espanha à cabeça, com um valor equivalente a 18,7% do PIB.

O mais recente estudo publicado em Portugal (também em Outubro de 2009) - que, na verdade, foi o primeiro estudo consistente realizado especificamente sobre a economia paralela portuguesa -, devia, no entanto, fazer-nos corar de vergonha: no mesmo ano (2008), estima-se que a economia paralela rondava, na nossa fraudulenta terrinha, os 30 mil milhões de euros, o correspondente a cerca de 23% do PIB – e este número deverá ter crescido em 2009 e em 2010, com o agudizar da crise económica.

Ressalvada uma estagnação nos números negros no período entre 2000 e 2007 (21,5% do PIB), a economia paralela em Portugal tem crescido continuamente, desde os 13% do segundo semestre de 1982 até aos alarmantes 23% atuais.

Mas mesmo estes 23% são uma estimativa por baixo. Segundo o Presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude, os 23% não incluem as atividades ilegais (droga, prostituição, jogo, etc.) e dizem essencialmente respeito à economia paralela de fuga ao fisco: o valor real será ainda mais elevado.

O valor da economia paralela em Portugal é 2,6 vezes o dos Estados Unidos, 2,3 vezes o do suíço, 1,8 vezes o do Reino Unido...

Vários estudos têm revelado inequivocamente que os traços culturais dos portugueses “são mais propícios à aceitação e realização da fraude”. Nada de que nos devamos orgulhar…


O que é a economia paralela?

Mesmo que não tenhamos uma verdadeira consciência do quanto ela nos prejudica, todos temos uma noção básica do que é a economia paralela. Desde o taxista, advogado, pintor, carpinteiro, eletricista ou sapateiro que não passa recibos pelas remunerações que recebe, até ao dinheiro cobrado num café ou num restaurante por uma refeição que não é registado contabilisticamente e, por conseguinte, oficialmente é como se nunca tivesse sido recebido, passando por muitas outras realidades, como declarar ao fisco menos rendimentos do que aqueles que se receberam (com ou sem recibo), não entregar ao Estado o IVA que se recebeu, ter um empregado cuja remuneração se declara em parte e se oculta na outra, ou que se oculta mesmo na totalidade (empregado não declarado), para fugir aos pagamentos à Segurança Social, a falsificação de faturação para obtenção de vantagens fiscais, etc., a economia paralela abrange várias realidades de que todos já ouvimos falar.

Há o indivíduo que exerce uma atividade registada (advogado, dono de café, feirante, etc.), mas que, mediante estratagemas diversos, consegue declarar apenas parte dos rendimentos por ela gerados. Os estratagemas utilizados podem ser mais simples (não passar recibo ou fatura) ou mais sofisticados (programa informático ao serviço da fraude).

Temos, depois, o facto de sermos um “país de desenrascas”. Que começa naqueles que têm uma profissão “oficial” (fiscalmente registada) e depois têm uns “biscates por fora”, pelos quais muitas vezes obtêm rendimentos superiores aos daquela profissão – e que não são declarados. E, no último nível da escala, temos os "clandestinos", que, oficialmente não têm rendimentos, alguns aproveitando-se mesmo desse facto para – o cúmulo da chico esperteza - ainda receberem apoios sociais do Estado (que somos nós todos que pagamos)...

Muitos – os chamados “desenrascas puros” – vivem totalmente à margem do fisco porque não têm sequer (nunca tiveram ou já não têm) licença legal para exercer a respetiva atividade (de mecânico, de eletricista, de médico, de advogado, de construtor, etc.).

Outros indivíduos não poderiam sequer obter essa licença, por ser ilegal a atividade a que se dedicam (comercialização de droga, jogo ilícito, etc.).


Efeitos na economia

Sobretudo em países mais desenvolvidos como Portugal, a economia paralela não é necessariamente nociva para o crescimento da atividade económica.

Com efeito, qual o destino dado aos rendimentos gerados na economia paralela? Em grande parte, são reinvestidos na atividade económica “clandestina”, o que pode resultar num aumento da produção de bens ou serviços [o que, por seu turno – efeito negativo -, faz crescer a economia paralela…], ou gastos na compra de produtos ou serviços, incrementando as transações comerciais. Sendo a economia oficial maioritária em Portugal, a maior parte deste gasto será feito em bens ou serviços de empresas da economia oficial (um televisor LCD, um carro, uma casa, uma cirurgia estética), contribuindo, assim, para o desenvolvimento destas.

Mas seria precipitado concluir que então, afinal, a economia paralela não é prejudicial.

Isso é pura ilusão, que se desfaz num instante com este exemplo: imagine que um dia lhe assaltam a casa e lhe levam o recheio todo e ainda o automóvel que estava estacionado na garagem. Imagine que os gatunos, com o produto da venda dos bens roubados, compram bens e serviços produzidos na economia oficial (uma casa, uma aparelhagem, um carro de alta cilindrada….). A atividade económica não terá sido prejudicada e até pode ter saído beneficiada. Mas o certo é que foi roubado e ficou sem os seus bens… Com a economia paralela passa-se o mesmo, apenas com a diferença de muitos de nós não termos a perceção de estarmos mesmo a ser roubados...

Por outro lado, a economia paralela distorce a concorrência económica. Imagine que explora um café. E que eu tenho um café na mesma rua. Mas que a minha atividade é, em grande parte, clandestina: através de estratagemas diversos, consigo fugir ao fisco e à segurança social – grande parte do meu negócio não é declarado. Com o dinheiro que poupo, consigo, por exemplo, praticar preços imbatíveis e melhorar substancialmente o serviço, prejudicando-o a si, que prossegue a sua atividade honestamente e cumprindo as suas obrigações legais. No limite, o seu café pode ir à falência, enquanto o meu prospera. Mesmo que não chegue a esse limite: os seus custos operacionais são superiores aos meus, não porque eu seja uma melhor gestora, mas por causa da fraude a que me dedico, causando uma distorção intolerável na concorrência.

O que se diz de um café, pode dizer-se de um eletricista, de um taxista, de um advogado ou de um pintor, só para citar alguns exemplos: a economia paralela está bastante disseminada…


Em que é que a economia paralela me prejudica?

A economia paralela é causa de grave injustiça social.

Uma das consequências diretas é a diminuição das receitas do Estado [mesmo que parte do rendimento clandestino seja gasto na economia oficial, só uma pequena parcela da receita fiscal perdida é que é, por essa via, “recuperada”].

Se estivermos a falar nas receitas da Segurança Social, o que está em causa é o bolo de onde mais tarde vai sair o pagamento da sua pensão de reforma.

Se estivermos a falar da receita fiscal, não é difícil perceber que todos somos prejudicados, porque aquilo que o Estado não recebe destes indivíduos, pagamos nós do nosso bolso. Algo que poderia, em termos grosseiros, ser explicado através deste exemplo: se o Estado constrói uma estrada, como somos menos a pagá-la (graças aos que fogem ao fisco), o custo que cabe a cada um de nós pagar é maior do que aquele que pagaríamos se essa fraude não existisse.

Já ouvi gente a vangloriar-se de não pagar impostos e de justificar essa sua atitude anti-social com o facto de, por um lado, "não obter nenhum benefício do Estado" e, por outro lado, o dinheiro dos impostos ser "mal aplicado".

Mas não há quem neste país não seja beneficiado pelo Estado. Desde o momento em que se põe o pé na rua: a rua, a estrada na qual conduzimos, a iluminação pública, a segurança pública, tanta coisa!; e mesmo sem pôr o pé na rua: o coletor de esgotos, a recolha dos resíduos domésticos, a rede pública de energia…; desde que se nasce que se está a beneficiar do Estado! Aqueles que fogem ao fisco estão a beneficiar de serviços para os quais não contribuem. Não é diferente de entrar num restaurante, comer e sair sem pagar a conta.

A economia paralela gera um círculo vicioso. A diminuição da receita fiscal causada pela economia paralela conduz a uma situação em que o Estado tem menos dinheiro para gastar. Nesse circunstancialismo, ocorre normalmente o corte de benefícios sociais e de obras em benefício da comunidade, o que, por seu turno, acarreta o aumento da sensação de que o dinheiro dos impostos é mal gasto, cenário propício a… um aumento da economia paralela. Significa isto que aqueles que fogem ao fisco por acharem que o dinheiro dos impostos é mal aplicado são precisamente dos que mais contribuem para a situação de que se queixam...

Por outro lado, aqueles que honestamente cumprem as suas obrigações fiscais são, precisamente, os que acabam por suportar um aumento da carga fiscal, devido à fuga ao fisco dos outros. Ora o aumento da carga fiscal é, precisamente, um dos fatores que mais leva as pessoas a entrar na economia subterrânea: mais um círculo vicioso...

Por fim, tendencialmente, aquele que foge ao fisco, se tiver empregados ao seu serviço, descurará as suas condições de trabalho e cortar-lhes-á o acesso aos direitos e regalias a que os trabalhadores têm, por lei, direito. Mais injustiça social. Por seu turno, aqueles que, tendo trabalhadores ao seu serviço, cumprem as suas obrigações fiscais, por terem custos operacionais superiores têm mais dificuldade em melhorar as condições de trabalho e remuneratórias dos seus empregados. A economia paralela é uma das grandes causas das deficientes condições de trabalho existentes em Portugal.

Globalmente, como se vê, o efeito é o de um país mais injusto, com maiores desigualdades sociais e económicas. O que contribui para baixar ainda mais os nossos níveis de auto-estima, que já não são nada famosos... 

Se a isto acrescentarmos o facto de algumas destas pessoas ainda pedirem ao Estado benefícios sociais (rendimento social de inserção, subsídio de desemprego e outros), por não declararem rendimentos (ou declararem poucos), tudo devia deixar-nos suficientemente chocados para nos levar a fazer alguma coisa...


O que podemos fazer?

...porque de facto podemos fazer alguma coisa. Todos nós. Não podemos acabar com a economia paralela, mas podemos ter uma contribuição importante para a reduzir substancialmente. Não se limite a queixar-se do Governo: faça alguma coisa - também depende de si!

Além de divulgar este artigo, o que nunca deve deixar de fazer é solicitar sempre a fatura (quando exigível) ou, no mínimo, o talão de caixa, do qual conste o nome e número fiscal do vendedor ou prestador do serviço, o produto vendido ou serviço prestado e o preço, com indicação da taxa de IVA. Quando abdicamos do documento comprovativo, o vendedor ou o prestador de serviço pode ou não registar na sua contabilidade o preço que pagámos e, se não registar, é como se ele nunca tivesse existido: entra diretamente para os bolsos do indivíduo e dele não é pago um cêntimo de imposto. Pior: o IVA que pagámos (por um café, por um bolo, por um almoço...) também vai para os seus bolsos, em vez de ser entregue ao Estado. Na prática, estamos a pagar impostos (o IVA) a estes indivíduos!

Noutro tipo de casos – prestadores de serviços a recibos verdes -, é mais difícil convencer os utentes dos serviços, que tenderão a pôr o seu interesse individual à frente. Se pedir uma fatura / talão de caixa não nos custa nada (sendo incompreensível que muita gente não o faça), quando pedimos um recibo a um advogado, a um eletricista ou a um pedreiro, já sabemos o que nos espera: “eu posso passar recibo, mas assim terá de pagar o IVA”. E quantos desistem do recibo para não terem de pagar o IVA?

A verdade é que, se não exigirmos o recibo, estamos a ser verdadeiros cúmplices de uma fraude. E, embora julguemos que ficamos a ganhar (o valor do IVA que não pagámos), na realidade isso não passa de uma ilusão: vamos é ficar a perder, não só porque vamos acabar por pagar o imposto a que o outro escapou ludibriando o Estado, como ainda estamos a alimentar um sistema económico subterrâneo que é, como vimos, muito danoso, que conduz a um país ainda mais injusto e que, em última análise, nos vai prejudicar ainda mais, com a agravante de ser uma pescadinha de rabo da boca difícil de controlar.
[Lembre-se também que pedir recibo tem outras vantagens: fica com uma prova do pagamento, com base na qual pode reclamar do bem defeituoso que comprou ou do serviço que foi mal prestado e lhe causou prejuízos. Lembre-se de que "o que é barato muitas vezes sai caro"...]

Tenha também em conta que o pagamento em dinheiro é suscetível de não deixar rasto, ao contrário do que sucede com o pagamento com cartão (de débito ou de crédito) ou com cheque.

Habitue-se, por fim, a “boicotar” comerciantes ou prestadores de serviços que habitualmente não entregam recibo, fatura ou talão de caixa - mesmo que aquele café seja muito bom, naquele restaurante da praia se coma muito bem ou aquele eletricista seja mais barato...

Estes indivíduos dependem dos seus clientes para desenvolverem a sua economia subterrânea. Esses clientes sou eu, é o leitor, somos todos nós. A arma mais eficaz contra esta praga que nos envergonha a nós, portugueses, somos nós que a temos. Não a desperdicem!

O especialista em gestão de fraude José António Moreira sugeriu recentemente que, na nota de liquidação do IRS que anualmente todos recebemos em casa, fosse inserida uma linha com indicação do valor que tivemos de pagar a mais de imposto para compensar o que estes indivíduos não pagaram. A ideia é excelente: é necessário compreender que acaba sempre por sair do nosso bolso. Do bolso de quem já paga impostos, enquanto os que vivem na economia subterrânea nada pagaram - e, quem sabe, alguns talvez estejam neste momento a sorrir, a passar umas ricas férias com o dinheiro que nos subtraíram…

Dado que o valor da economia paralela corresponde, numa estimativa por baixo, a quase 1/4 do PIB, parta do princípio de que do valor total dos impostos que paga, um quarto não pagaria se não existisse a economia paralela. Um quarto, não se esqueça...

________________

O sentimento de impunidade é um dos fatores que ajuda a disseminação da economia paralela, sobretudo entre as pessoas que mais facilmente podem ter a tentação da fraude. A divulgação de condenações nesta área ajuda a afastar esse sentimento de impunidade, pelo que estamos a considerar a hipótese de a fazer neste blogue.

.................................

O estudo referido neste artigo foi realizado pelo Observatório de Economia e Gestão de Fraude. Com sede no Porto, esta instituição foi criada há cerca de ano e meio (Novembro de 2008) por um conjunto de investigadores e docentes universitários com especialidade na área da Gestão de Fraude ligados à Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Contribuir para o desenvolvimento da investigação neste domínio e para uma opinião pública portuguesa mais esclarecida e apoiar as organizações na prevenção da fraude são os grandes objetivos deste observatório. Só lhes podemos agradecer.

................................

Este artigo é dedicado a Saldanha Sanches, recentemente falecido e que nunca deixou de levantar a voz contra a economia paralela em Portugal.

................................

Fontes:

- Estudo “Economia não registada em Portugal”, do Observatório de Economia e Gestão de Fraude, Outubro de 2009

- “Economia não registada em Portugal” – artigo de Óscar Afonso, Fevereiro de 2010

- “Inovar no combate à fraude por subfacturação” – artigo de José António Moreira, Outubro de 2009

- “Economia não registada: o que abrange e o que é realmente abrangido” – artigo de Óscar Afonso, Outubro de 2009

- “A fraude como um acto de egoísmo” – artigo de António Maia, Julho de 2009

- “Brandos Costumes, fraudes ardentes” – artigo de Carlos Pimenta, Dezembro de 2008

- “Reflectindo sobre as consequências da economia não registada” – artigo de Óscar Afonso, Abril de 2010

- notícia do jornal Público de 29/5/2010 “Fuga ao fisco – Economia paralela vale 30 mil milhões

- notícia do Diário de Notícias de 4/6/2010 "A torre da evasão fiscal não pára de crescer"

- notícia do Publico.es de 5/10/2009 “España, a la cabeza de la Unión Europea en actividad irregular

- blogue Economia Paralela

Todas as imagens foram retiradas da internet.