O lançamento de uma nova auto-estrada

I
Antes da conferência de imprensa de ontem, na qual o Governo anunciou o lançamento de uma nova auto-estrada, o blogue A Nossa Terrinha conseguiu infiltrar na sala onde decorreu a reunião do Conselho de Ministros um inseto com um nanomicrofone e pudemos, desta forma, escutar parte da reunião, até ao momento em que o animal foi liquidado por um dos governantes:


[nota: não conseguimos identificar os autores das vozes escutadas]

(…)
- …almente, meus caros, a hora é de gravidade. O país está numa situação difícil e o povo está muito descontente com as medidas de austeridade que fomos obrigados a tomar.

- Muito descontente, muito descontente… Precisamos de fazer alguma coisa.

- Temos de pensar um projeto global para o país a médio e longo prazo, bem sustentado e articulado. Aproveitando o know-how das universidades, as propostas da sociedade civil, os bons exemplos de outros países, a…

- Porque não lançamos antes uma auto-estrada?

- Boa!

- Grande ideia, pá!

- Apoiado!

(aplausos)

- Os portugueses ficam sempre satisfeitos com uma nova auto-estrada. E a nós não nos dá trabalho nenhum: encomendamos os estudos, abrimos o concurso, nomeamos um júri, adjudicamos a obra e já está!

- É isso!

- Vamos nessa!

- Mas onde?

- Ah, mas eu trago trabalho de casa feito! Apresento-vos a nova auto-estrada entre A-do-Pinto e Corte de Pão e Água!

(silêncio prolongado)

- Hmmm… porreiro, pá! E isso fica onde?

- No Alentejo profundo. No Alentejo mais desertificado. Fica mais ou menos entre Serpa e Mértola. Pensem bem: anunciamos a auto-estrada como forma de pôr termo ao enorme despovoamento dessa região, em nome da coesão territorial, em prol do desenvolvimento e do turismo, da…

- Do turismo?

- Sim, esta é a melhor parte: a auto-estrada passará pelo Pulo do Lobo!

- Pule do quê?

- Pulo do Lobo.

- Não conheço.

- Nem eu.

- Mas com a auto-estrada vão poder conhecer: lá está! Hoje, para ir ao Pulo do Lobo, só em estradinhas de terra batida, o que desencoraja os turistas. Com a auto-estrada, a afluência de turistas vai aumentar muito.

- Brilhante! Lembram-se quando o Cavaco era primeiro-ministro e foi ao Pulo do Lobo, com o carro de Estado por caminhos de terra batida? Nós vamos mostrar a esse senhor que evoluímos muito desde essa altura!

- Mas nós temos dinheiro para essa auto-estrada? É grande?

- Tem uns 50 quilómetros. Não, é claro que não temos dinheiro! Tem de se fazer uma PPP. Olha um inseto, mata!

- Já o apanhei, olha…
(…)

Na conferência conjunta do Ministro da Economia e do Ministro das Obras Públicas, realizada após a reunião, foi anunciado o lançamento da nova auto-estrada. Foi salientado que o projeto vai originar a criação de postos de trabalho, vai permitir encurtar significativamente os atuais tempos de deslocação, «permitindo ganhos de tempo e de dinheiro», vai reduzir substancialmente a sinistralidade rodoviária («com grandes benefícios económicos e sociais»), vai contribuir para o desenvolvimento económico da região e fomentar «de forma extraordinária o turismo, mediante a construção de acessos ao Pulo do Lobo que finalmente dignificam este nosso belo recanto natural e contribuirão para um grande aumento na afluência de turistas a este local, atualmente sacrificado com péssimos acessos que afugentam os turistas». Foi ainda referido que no Pulo do Lobo vão ser criadas «todas as condições» para os turistas, nomeadamente uma área de serviço, relativamente à qual várias cadeias internacionais de restauração já mostraram interesse. A terminar, e depois de referir que a nova acessibilidade vai «permitir finalmente travar o despovoamento da região» e que a relação custo-benefício da obra é «globalmente positiva», estas palavras do Ministro das Obras Públicas: «Mas é sobretudo uma palavra de solidariedade que quero aqui hoje deixar. Solidariedade para com toda uma região. Solidariedade para com uma causa. Solidariedade para com uma população esquecida durante décadas e que agora vê finalmente a oportunidade do desenvolvimento, a oportunidade do progresso, a oportunidade de apanhar o comboio da modernidade».

Aproveitando a boleia da palavra «comboio», um jornalista inquiriu os dois ministros sobre eventuais projetos ferroviários para o Alentejo, mas os governantes manifestaram a sua indisponibilidade para responder a perguntas.

Catarina

Fonte: obviamente, a minha imaginação

6 comentários:

Anónimo disse...

Pelos vistos anda tudo a fumar do mesmo...

Madalena disse...

Depois de tantos posts tão sérios e deprimentes, finalmente podemos rir um bocado com isto. Obrigada!

Anónimo disse...

Genial.

Anónimo disse...

lá vao os lobos.... venha ao alcatrao! nao ficam contentes equanto o país nao estiver completamente alcatroado e betonado! abaixo a natureza que ninguem precisa e é uma massada!

Anónimo disse...

O nosso governo está a seguir as palavras de outro génio chamado Bush. Ele disse, na altura dos grandes incêndios florestais na Califórnia, que se não existissem árvores não havia incêndios. Os nosso geniais políticos estão apenas a seguir as ideias dele.

Rui disse...

Até o nome da povoação Corte de Pão e Água foi bem escolhido. E existe!