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- Quando atravessavam a via
numa passagem de peões sinalizada: 92,3% (155 vítimas)
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- Quando atravessavam a via numa passagem de peões sinalizada, mas com desrespeito da
sinalização: 7,7% (13 vítimas)
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[Notas: 1) a proporção é praticamente idêntica nas
vítimas mortais e nos feridos graves. 2) Fora das localidades, só dois peões é que
foram gravemente atropelados quando atravessavam a via numa passagem de peões - e com respeito da sinalização.]
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O número de peões mortos ou
feridos com gravidade em plena passagem de peões, dentro das localidades, tem
vindo a aumentar. E o aumento não se tem verificado nos casos em que os peões
desrespeitam a sinalização [que, aliás, equivalem a apenas 2% do total de peões
vítimas graves], mas sim nos casos em que a respeitam. Nos últimos cinco
anos, só em 2008 é que o número dos atropelamentos na passagem de peões (com respeito da sinalização por parte dos peões) foi mais elevado do que o de 2011 [em 2011 houve menos três vítimas graves do que em 2008], e os atropelamentos nessas circunstâncias
equivalem a mais de um quarto (26,5%) dos peões mortos ou feridos com gravidade
(!), surgindo em primeiríssimo lugar na lista de circunstâncias em que os peões morrem ou ficam gravemente feridos em Portugal. Repita-se: a situação mais frequente em que os peões morrem ou ficam gravemente feridos verifica-se quando estes estão a atravessar a passagem de peões, com respeito da sinalização. São dados preocupantes.
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É preciso ter alguma cautela na
interpretação deste tipo de números, nomeadamente no que diz respeito à
atribuição da culpa pelo atropelamento.
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As estatísticas anuais da
sinistralidade rodoviária, relativamente aos peões mortos ou feridos com
gravidade, não fornecem indicações da culpa dos
desastres, limitando-se a fornecer dados relativos às circunstâncias factuais em
que esses desastres ocorreram.
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Não é, pois, possível olhar
para as estatísticas e concluir que x% dos peões mortos ou feridos com
gravidade decorreram de desastres com culpa do condutor e outros x% decorreram de desastres em que a culpa
é do próprio peão.
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No caso acima citado, por
exemplo, das vítimas graves ocorridas quando o peão atravessava a
passagem de peões, mas com desrespeito da sinalização (2,2% do total de peões vítimas graves), este desrespeito não permite concluir,
sem mais, que a culpa desses atropelamentos foi dos peões e não dos condutores.
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Em primeiro lugar, há
circunstâncias em que pura e simplesmente não é possível atribuir culpa ao
peão, quando este é, por exemplo, uma criança, por natureza insuscetível de
culpa.
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Em segundo lugar, o facto de o
peão atravessar a passagem de peões com o sinal vermelho não constitui,
obviamente, carta branca para o cometimento de um homicídio (mesmo que apenas
negligente): o sinal verde para o automobilista não constitui uma licença para matar. Exemplo: o peão inicia a travessia da passagem
de peões com o sinal vermelho; o condutor vê o peão a atravessar, a tempo de
travar com total segurança e evitar o atropelamento, mas ainda assim não diminui a
velocidade, acabando por atropelar o peão; seria absurdo (e um
precedente perigoso) se não se atribuisse culpa ao condutor (artigo 103.º, n.º 1 do Código da Estrada). Serão frequentes os casos de repartição
de culpas, ou seja, em que o condutor também tem culpa no atropelamento, mesmo tendo o peão desrespeitado a sinalização (condutor a falar ao telemóvel, distraído a regular o rádio, em excesso de velocidade, etc.). Os
condutores têm sempre de observar especiais regras de cuidado à aproximação de
passagens de peões, devendo, por exemplo, «moderar especialmente a velocidade»
(esteja ou não verde o semáforo). Se atropelar um peão a 70 ou 80 km/h, por
exemplo (ou mesmo a 50 km/h), facilmente lhe poderá ser atribuída culpa pelo atropelamento, porque
há uma relação direta entre a velocidade, por um lado, e a distância de
travagem do veículo e a visibilidade, pelo outro lado.
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O mesmo se diga dos casos em
que o peão estava a atravessar a via fora da passadeira, mas a menos de 50
metros de uma passagem de peões devidamente assinalada (13,8% das vítimas
graves): essa circunstância, por si só, não isenta de culpa o automobilista. Aliás, é preciso ter em conta que a regra dos 50 metros é de difícil aplicação prática, como facilmente se percebe. Ninguém anda na rua a medir distâncias antes de decidir atravessar a faixa de rodagem, e há quem não tenha noção das distâncias, o que não pode merecer qualquer tipo de censura (e não falamos só de crianças).
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Da mesma forma, de acordo com o Código da Estrada (que os peões não têm obrigação de conhecer), o peão deve observar alguns cuidados antes de iniciar a
travessia da faixa de rodagem, mesmo que o faça numa passadeira, pelo que o
facto de ser atropelado em plena passadeira não significa necessariamente que a
culpa seja, na totalidade, do condutor. Poderá, quando muito, dizer-se que,
tendencialmente, nesses casos a culpa será do condutor e não do peão, ou mais
do condutor do que do peão.
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Peões mortos ou feridos com gravidade dentro das localidades, segundo as ações por eles praticadas, em 2011.
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Olhando para os dados
estatísticos, há algumas circunstâncias de facto perante as quais se pode
concluir com segurança que a culpa do atropelamento só pode ser atribuída ao
condutor: por exemplo, se o peão é morto ou ferido com gravidade quando estava
a circular no passeio ou na berma (8,5% das vítimas graves) ou quando estava
numa “ilha” da via (0,7% das vítimas graves), não se vê como se possa atribuir
a culpa ao peão.
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Noutros casos, não é possível
estabelecer uma relação necessária entre a circunstância de facto enunciada e a culpa do
desastre.
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Se, como é seu direito, o peão
estava a atravessar a via fora de uma passagem de peões, mas a mais de 50
metros de uma passagem de peões sinalizada (12,9% das vítimas graves),
tendencialmente a culpa será do automobilista, mas poderá haver casos de co-responsabilidade
do próprio peão.
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Não obstante não se poder concluir, das estatísticas oficiais de sinistralidade, que a responsabilidade por estes desastres é principalmente do peão, têm-se sucedido, nos últimos anos, campanhas de prevenção de atropelamentos dirigidas sobretudo aos peões, e não aos automobilistas.
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Isso vem na linha da forma como este tipo de sinistralidade tem sido tratada nos relatórios oficiais de sinistralidade rodoviária. Se passarmos os olhos pelos relatórios de sinistralidade da última década, podemos verificar que eles chegam ao ponto de enumerar as circunstâncias em que ocorreram os atropelamentos sob o ponto de vista das infrações praticadas pelos peões – sem que se faça qualquer menção às infrações praticadas pelos automobilistas –, sendo qualificado como infração, por exemplo, o surgimento “inesperado” do peão na faixa de rodagem (como se se pudesse, por exemplo, acusar uma criança de 6 anos de cometer uma infração legal) ou até o facto de o peão estar alcoolizado (como se lei alguma proibisse um cidadão de estar alcoolizado). E, no entanto, podemos também verificar que esses quadros mostram, invariavelmente, que a maioria dos atropelamentos graves cai no item “nenhuma infração” [praticada pelo peão].
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Em alguns desses relatórios, deparamos ainda com o destaque atribuído a algumas “infrações”
praticadas pelos peões, com frases do tipo «x% dos peões mortos ou feridos
graves surgiram inesperadamente na faixa de rodagem ou desrespeitaram a
sinalização» ou «x% dos peões mortos e feridos graves atravessaram fora da
passadeira ou circulavam em plena faixa de rodagem».
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O quadro de repartição das
vítimas de acordo com as “infrações” por elas próprias praticadas foi
abandonado nos relatórios dos anos mais recentes, mas, se olharmos para o
relatório de sinistralidade de 2011, podemos verificar que as circunstâncias em
que os peões morreram ou ficaram gravemente feridos são descritas única e
exclusivamente do ponto de vista das ações praticadas pelos próprios peões (ver
o quadro acima mostrado) – como se dependesse sobretudo deles o fim
desta tragédia.
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É assim que, por exemplo, são
indicados os casos em que os peões atravessavam a passagem de peões com desrespeito
da sinalização, mas não encontramos, em parte alguma do relatório, qualquer
indicação expressa dos casos em que os desastres aconteceram quando os
automobilistas desrespeitaram a sinalização; é por isso também que são indicados os
casos em que o peão surge “inesperadamente” na faixa de rodagem, mas não
encontramos, no relatório, qualquer referência aos casos em que os automóveis
surgiram “inesperadamente” ao peão [por exemplo, invadiram inesperadamente o passeio; deslocavam-se
a uma grande velocidade (se se deslocar a uma velocidade elevada, dentro de uma
localidade, um automóvel pode surgir muito de repente ao peão); mudaram de
direção inesperadamente (sem fazer pisca);
etc.]; é também por isso que se descreve os casos em que o peão morreu ou ficou
gravemente ferido quando circulava na faixa de rodagem, mas não se isola os
casos em que o peão o fazia por não ter outro local onde transitar; etc., etc.,
etc.
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É preciso mudar de uma vez por
todas este paradigma e esta forma completamente enviesada de olhar para a
sinistralidade rodoviária que vitima os peões (que constituem 21% do total de
vítimas graves da sinistralidade rodoviária em Portugal).
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Entre o automobilista e o peão,
não podem subsistir dúvidas sobre qual é a parte fraca e de quem controla a arma perigosa.
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Nos atropelamentos de peões ocorridos em 2011 em Portugal, morreram ou ficaram gravemente feridos 661 peões; nesses atropelamentos, nenhum automobilista morreu ou ficou ferido com gravidade.
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Se é verdade que tanto automobilistas como peões devem, segundo o Código da Estrada, observar determinadas regras de cuidado, não é possível colocar em pé de igualdade a responsabilidade de uns e de outros pelo cumprimento dessas regras. E não é só porque entre os peões estão crianças. O automobilista não pode conduzir sem conhecer pormenorizadamente as regras do Código da Estrada - e faz um exame de código no qual tem de obter aprovação. A menos que seja simultaneamente condutor encartado, o peão não tem idêntica obrigação - e recorde-se que a maior parte dos portugueses não têm carta de condução (como é possível deduzir destes números).
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Nos atropelamentos de peões ocorridos em 2011 em Portugal, morreram ou ficaram gravemente feridos 661 peões; nesses atropelamentos, nenhum automobilista morreu ou ficou ferido com gravidade.
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Se é verdade que tanto automobilistas como peões devem, segundo o Código da Estrada, observar determinadas regras de cuidado, não é possível colocar em pé de igualdade a responsabilidade de uns e de outros pelo cumprimento dessas regras. E não é só porque entre os peões estão crianças. O automobilista não pode conduzir sem conhecer pormenorizadamente as regras do Código da Estrada - e faz um exame de código no qual tem de obter aprovação. A menos que seja simultaneamente condutor encartado, o peão não tem idêntica obrigação - e recorde-se que a maior parte dos portugueses não têm carta de condução (como é possível deduzir destes números).

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E o pior é que muito pouco se vai fazendo para mudar a sério esta realidade…
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Joana Ortigão
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Fonte: relatório português de sinistralidade. Os
dados respeitam só às estradas do Continente, porque não existe este tipo de tratamento de dados
estatísticos relativamente às regiões autónomas.