Estacionamento antes de uma passadeira
Velocidade dentro de uma localidade
Atropelamento de criança
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Se sairmos à rua numa
vila ou cidade portuguesa, em poucos minutos constataremos que uma grande
quantidade de automobilistas estacionam os seus veículos imediatamente antes do
traço branco que antecede uma passadeira, talvez por pensarem erroneamente que
esse traço marca o limite até ao qual se pode estacionar. Estacionar a menos de
5 metros (antes) de uma passagem de peões, além de ser proibido (art.º 49.º do
Código da Estrada), é perigoso. Aumenta o risco de atropelamento. A proibição
legal existe precisamente porque um veículo parado ou estacionado a menos de 5
metros de uma passagem de peões impede ou dificulta a visibilidade do
automobilista que circule na faixa de rodagem, não permitindo que este veja,
com a antecedência mínima necessária, um peão a iniciar o atravessamento da
faixa de rodagem. E a visibilidade do peão que inicia essa travessia fica
também afetada, não conseguindo ver os automóveis a aproximar-se. Quando o peão
é uma criança ou uma pessoa de baixa estatura, o risco de atropelamento é
significativamente acrescido.
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Se um automobilista
atropelar um peão nestas circunstâncias, poderá invocar que não é responsável,
por não ter conseguido ver o peão, graças ao automóvel ilegalmente estacionado
a menos de 5 metros da passadeira?
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O Miguel estava no
início da adolescência quando foi atropelado, em 1998. Além de estudar,
praticava halterofilia e já tinha disputado várias provas nacionais de juvenis.
Preparava-se para participar num campeonato europeu, que iria ter lugar em
Abril desse ano, bem como no campeonato regional de juvenis, em Maio.
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Uma tarde de Fevereiro
de 1998, cerca das 19:30h, a Sofia conduzia o seu automóvel numa rua de Sacavém [a rua mostrada
nesta imagem de satélite], à velocidade de 50 km/h
e no sentido indicado pelas setas amarelas. O Miguel, que estava a brincar às
escondidas com os amigos, começou a atravessar a rua, na passadeira [a andar,
não a correr]. Não viu o carro da Sofia a aproximar-se, porque havia um
automóvel estacionado a menos de 5 metros da passadeira (até ao tal traço
branco), que lhe tapava a visibilidade. Também por causa desse automóvel, a
Sofia só viu o Miguel a atravessar a passadeira quando o carro que conduzia já
só estava a 5 metros de distância. Antes mesmo de a Sofia conseguir pôr o pé no
travão, já estava a atropelar o Miguel, que foi projetado no ar e caiu uns
metros mais à frente.
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Num atropelamento à
velocidade de 50 km/h, a probabilidade de o peão morrer é de 40%. O Miguel
sobreviveu. Foi submetido a uma intervenção cirúrgica para tratamento de
fraturas dos ossos da perna direita. Esteve imobilizado durante algum tempo e
passou depois a andar com o auxílio de canadianas. Disse adeus aos campeonatos.
Na escola, chumbou esse ano letivo. E as marcas do acidente ficarão para o
resto da vida: o Miguel ficou com a perna direita mais curta do que a esquerda,
com uma limitação de movimentos de flexão num dos joelhos e com várias
cicatrizes na cara e nos membros, mesmo após cirurgia plástica.
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Na confusão e na
aflição que se seguiu ao acidente, ninguém se lembrou de anotar a matrícula do
automóvel mal estacionado. A Sofia não assumiu a responsabilidade pelo
acidente, invocando que lhe era impossível ver o Miguel a atravessar a rua por
causa do veículo estacionado antes da passadeira, e que o Miguel só devia ter
atravessado depois de se certificar de que não vinha nenhum carro. Ainda por
cima, dizia a Sofia, conduzia a 50 km/h, e portanto circulava dentro do limite
legal de velocidade (limite máximo dentro das localidades).
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O caso foi para
tribunal. Os juízes analisaram as circunstâncias em que se deu o acidente e
concluíram que se “compreende” que, dada a falta de visibilidade, a criança
tenha surgido subitamente a 5 metros de distância e que a Sofia nem sequer
tenha tido tempo de travar. Mas acrescentaram: “compreender” porque é que o
acidente se deu não significa que a Sofia não tenha culpa no acidente. E
atribuíram à Sofia 70% da responsabilidade pelo atropelamento. E porquê?
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A Sofia, apesar de
circular a 50 km/h, conduzia a uma velocidade claramente excessiva. Por três
razões:
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Em 1.º lugar, o limite
máximo de velocidade dentro das localidades (50 km/h) não significa que em
todas e quaisquer circunstâncias se possa circular a essa velocidade. Se é essa
a velocidade “máxima”, isso significa que só é admissível circular a 50 km/h
dentro de uma localidade quando as circunstâncias forem as melhores,
designadamente: de dia; com pouca gente na via pública; com o piso seco e em
bom estado; com tráfego muito reduzido; com visibilidade excelente.
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Em 2.º lugar, não se
pode, dentro de uma localidade, circular a 50 km/h à aproximação de uma
passagem de peões. O art.º 25.º, n.º 1 do Código da Estrada é muito claro: o
condutor deve “moderar especialmente” a velocidade à aproximação de passagens
assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões. Se a velocidade
máxima dentro das povoações é de 50 km/h, mas se à aproximação das passagens de
peões a velocidade deve ser “especialmente moderada”, é forçoso concluir que
não se pode conduzir a 50 km/h à aproximação de uma passadeira: a velocidade
tem de ser necessariamente inferior. Ainda para mais, a Sofia, antes de
atropelar o Miguel, já tinha passado uma outra passadeira, poucos metros antes
(ver a imagem de satélite acima) – e mesmo assim circulava a 50 km/h.
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Em 3.º lugar, o art.º
24.º, n.º 1 do Código da Estrada obriga o condutor a reduzir a velocidade
sempre que ocorra uma circunstância especialmente relevante que o imponha. Ora
a Sofia, ao aproximar-se de uma passadeira, e percebendo que a visibilidade
sobre esta estava afetada devido à presença do veículo mal estacionado, não
podia deixar de ter redobradas cautelas. Circular a uma velocidade de 50 km/h,
numa circunstância dessas, é praticar uma condução irresponsável e perigosa. E
o resultado ficou à vista: só a 5 metros da passadeira é que a Sofia conseguiu
ver o Miguel a atravessá-la e, à velocidade exagerada a que ia, já não era
possível travar e evitar o atropelamento.
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A Sofia foi, por isso,
condenada pelo tribunal, condenação que incluiu uma indemnização pelos danos
morais sofridos pelo Miguel (por exemplo, pelas sequelas do acidente e pelas
enormes dores sofridas).
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Apesar de tudo, este
caso podia ter tido um desfecho bem mais trágico. Se, num acidente destes, a
probabilidade de o peão morrer era de 40%, muito superior era a probabilidade
de o Miguel ficar incapacitado para o resto da vida.
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O que é que podemos
aprender com este acidente?
IVelocidade
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Primeiro: que numa
situação destas o condutor deve aproximar-se da passadeira a uma velocidade
muito reduzida. É impensável fazê-lo a 50 km/h e muito menos achar que o
“cumprimento” do limite legal o absolve de toda a culpa.
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Esta ilustração da
prevenção rodoviária ajuda a perceber o que significa conduzir a 50 km/h numa
rua de uma localidade:
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Perante a necessidade
de uma paragem de emergência, o condutor tipicamente demora 1,2 segundos até
colocar o pé no travão. Nesse pequeníssimo instante, o carro, se circular à
velocidade de 50 km/h, percorre nada mais nada menos do que 17 metros! Depois
de o condutor colocar o pé no travão, o carro só se imobilizará 12 metros
depois (se o piso estiver seco; se estiver molhado, há que contar com 22
metros). Ou seja, à velocidade de 50 km/h, o condutor só conseguirá travar, na
melhor das hipóteses, 29 metros depois (ou 39 metros se o piso estiver
molhado).
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Não é, pois, difícil
perceber que, além de não se poder conduzir a 50 km/h à aproximação de uma
passadeira, a velocidade deve ser muito mais reduzida ainda quando há um
veículo a cortar a visibilidade sobre o início da passadeira. Numa
circunstância dessas, continuar, com total indiferença, a circular a 50 km/h ou
mesmo a 30 ou 40 km/h é conduzir de forma negligente e perigosa. Como referiram
os juízes neste caso, se o risco de acidente é maior, muito maior terá de ser o
cuidado empregue na condução.
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Isto choca-o?
Parece-lhe ridículo? Releia este caso e pense nisso... E pense também nisto: se
conduzir numa rua alagada, ou com gelo, e as circunstâncias aconselharem a
circular muito devagar, para evitar um acidente do qual possa ser vítima, o que
é que fará?...
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Num estudo realizado há
alguns anos por alunos finalistas da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, e
que implicou a observação de mais de três mil condutores em passadeiras junto a
paragens de autocarro e em avenidas residenciais e comerciais de muito
movimento (na zona de Alvalade, em Lisboa), concluiu-se que os automobilistas
passavam por uma das passadeiras, em média, à velocidade de 60 km/h... Trata-se
apenas de uma média e, portanto, muitos automobilistas passaram a uma
velocidade muito mais elevada: a velocidade máxima registada foi de 126 km/h...
IIEstacionamento antes de uma passadeira
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Segundo: é perigoso
estacionar um veículo a menos de 5 metros de uma passadeira (e, se o veículo
for mais alto do que o normal, como um jipe ou um monovolume, é altamente
aconselhável guardar uma distância superior a essa). Este caso mostra que o
risco de atropelamento é real e que as consequências podem ser graves.
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Neste caso, o condutor
que deixou o seu veículo mal estacionado não foi chamado à responsabilidade,
porque ninguém se lembrou de anotar a respetiva matrícula. Mas podia ser corresponsabilizado
pelo acidente: um automobilista que deixa o carro ilegalmente estacionado pode
ser responsabilizado por um acidente de viação (atropelamento ou outro) no qual
não interveio.
II
Atropelamento de criança
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O condutor de um
automóvel não pode esperar de uma criança o comportamento que se espera de um
peão adulto. Além de não terem tirado a carta de condução e de não conhecerem o
Código da Estrada, as crianças são naturalmente inexperientes e imprudentes e
têm uma noção reduzida do perigo e das distâncias. Por outro lado, além de não ser legítimo
esperar que crianças mais velhas só estejam na rua acompanhadas dos seus pais e
de mão dada a estes, também não se pode confiar em que as crianças mais
pequenas só circulem na rua de mão dada aos pais, não só porque há progenitores
mais imprudentes, mas também porque há inúmeras circunstâncias em que é
perfeitamente natural que isso não suceda (pense-se, por exemplo, numa mãe com
quatro filhos pequenos - continua a ter apenas duas mãos - ou num grupo de 20
crianças em passeio escolar, em que por regra não há mais de dois ou três
adultos encarregados de os vigiar, e isto só para citar dois exemplos). De
resto, a eventual corresponsabilização dos pais, quando deva ocorrer, não
implica que o condutor de um automóvel que atropele uma criança seja ilibado:
as culpas serão, quando muito, repartidas, mas o automobilista continua a ser
responsável pelo acidente (salvo em casos muito excecionais).
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Lembre-se de tudo isto
quando conduzir dentro de uma localidade e não pense que o limite máximo de
velocidade de 50 km/h (caso não haja no local limite inferior aplicável)
constitui uma autorização legal automática para conduzir a essa velocidade
máxima.
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Joana Ortigão
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Notas adicionais:
1 - Os nomes utilizados neste texto são fictícios. O caso é verdadeiro.
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2 - Como se pode ver na fotografia aérea acima mostrada, relativa à rua onde ocorreu o atropelamento e registada anos depois deste, os veículos continuam a estacionar ali a menos de 5 metros das passadeiras...
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3 - Os artigos citados são os do atual Código da Estrada, depois das alterações de 2005. As regras anteriores eram idênticas (mas os artigos tinham números diferentes).
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Agradecimentos:
- Elsa (pesquisa e esclarecimentos)
- Marta (edição de imagem)
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O gráfico de velocidade foi retirado dos simuladores da Prevenção Rodoviária Portuguesa.
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Sobre este assunto, ver, neste blogue:
I
- estacionamento antes das passadeiras um, dois e três
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- estacionamento ilegal autorizado dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito... (as próprias autoridades, por este país fora, criam ilegalmente lugares de estacionamento a menos de 5 metros das passadeiras, em prejuízo da segurança rodoviária). Se isso sucede na sua zona de residência, não cruze os braços: RECLAME à sua autarquia e ameace com uma queixa-crime contra os autarcas se ocorrer um atropelamento grave nestas circunstâncias.
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- Limite de velocidade dentro das localidades
Sobre esta série de artigos: Acidentes de viação: o que podemos aprender com eles [Introdução]
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Publicado originariamente no blogue em Novembro de 2011, sendo em grande parte uma reprodução de artigo que tinha sido publicado no blogue em 2010.
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